segunda-feira, 29 de maio de 2017


O DESTINO DOS HOMENS E DOS DEUSES
RITINHA,UMA HISTÓRIA FORMIDÁVEL


16 DE FEVEREIRO DE 2003

Everaldo Botelho Bezerra

I


         Foi aqui neste vilarejo que disseram que eu a encontraria. Meu coração de homem maduro dispara forte. Venho de longe, do Rio de Janeiro para vê-la mais uma vez, depois de tantos anos. Volto a procurá-la nesta situação especial.

         O vilarejo chama-se Pirangy do Norte. Subo por íngremes vielas, cansado, à procura de um passado. Há um hospital público; sento-me em sua amurada e tento descansar. Lá embaixo avisto o mar. Grandes barcas fazendo passeios com os turistas, levando-os até os arrecifes. Não escuto as vozes, mas a movimentação que fazem, pulando nas águas mornas. Pelo alarido, indicam que estão felizes.

         O que me trouxe aqui depois de tantos anos? Um amor que nunca esqueci. E nunca fui plenamente feliz depois disso. Agora, um misto de curiosidade, uma vontade de ouvir sua voz e explicações existenciais.

         - Ritinha... Ritinha... Por que tive de encontrar-te um dia? Ou melhor, por que tive de amar-te com tanto ardor? Um amor proibido, cheio de contradições e mistérios. Logo na minha juventude. Ritinha, lembro-me como se fosse hoje: eu era aeronauta e desembarcava pela primeira vez em Recife.

         Recife é uma porta aberta para todos os mares. Uma poesia viva. Os rios Capibaribe e o Beberibe cortam o núcleo urbano, espelhando em suas águas alegrias e dores de seu povo. Recife de Bandeira e Cícero Dias, das cores fortes nas roupas, nas frutas variadas, nas paredes de seus casarões; Recife misteriosa de histórias fascinantes, de corações enamorados ou solitários.

         Pensando em tudo isto, ando perdido em tuas ruas. O ano é de 1976 e tenho somente dois dias para beber desta brisa que só o Nordeste nos dá. Depois, viajo sei lá para onde. Viajar sempre, hábito da profissão. O importante é viver este momento. A praia da boa viagem, as luzes de néon, que com seu célere piscar as vezes me cega, as vezes cria imagens fantásticas em meu cérebro. Entro por ruas que não sei o nome, saio por outras que de tão belas sinto vontade de retornar. Mas, sigo em frente porque este é o meu destino, qual cometa queimando-se no espaço, prestes a se desintegrar, fazendo do desconhecido a sua órbita.

         Pontes, cores, cheiros. O cheiro do Nordeste me excita. Este vai e vem do vento balançando as folhas dos coqueiros. Dá-me vontade de abraçá-los e fornicá-los, estas ondas virgens se oferecendo ao meu sexo, vontade de estender-me por toda orla e gozar nas espumas, nos corpos morenos, com cheiro de sal, sabor de mangaba e peitos de  pitomba.

         Embriagado com a beleza da cidade, dos conjuntos arquitetônicos, deparo-me com a Faculdade de Direito em estilo renascentista. Fico parado sonhando com o passado distante. Aqui estudaram Castro Alves, Tobias Barreto e tantos outros. Sigo caminhando e transito na Rua da Aurora. Durante o dia com a luz do sol, destacam-se as cores verdes, brancas e azuis nas paredes antigas. Nas águas, estas cores refletem com uma luz trêmula que de longe dá uma dimensão maior à paisagem. À noite, a iluminação amarelada torna as águas mais escuras e a visão dos casarios parecem invadí-las.

         Recife Velho, aqui o passado está mais presente. Aqui nasceu Recife, Rua da Senzala Velha, atual Rua da Guia,  Os casarios de janelas encortinadas de cetim ou rendas, sacadas com gerânios carmins, soltos na leve brisa que nunca pára de soprar. Marinheiros com uniformes brancos de várias nacionalidades, semelhantes a bonecos de pano, sob as luzes que iluminam a rua.

         Rua do Bom Jesus, cheia de músicas, desde bandas de blues até o forró, prostitutas caminhando de braços com os marinheiros, turistas ou mesmo os nativos. É sempre assim e assim será. Um Recife que não dorme. De dia o trabalho, de noite o amor rasgado. Meninas vindas do interior a fugir da miséria, grande quantidade colocadas para fora de casa,  sem projeto, mas com a coragem de tentar uma nova vida. Meninas vestidas de blusas de rendas, bonitas ou feias, cada uma com seus sonhos, seus problemas, suas lágrimas. Entretanto, quando um homem se aproxima, imediatamente, apresentam um sorriso para não desagradá-lo. Ossos do ofício que aprenderam desde que chegaram a grande cidade. Cada qual com seu estilo, umas remexem os quadris levemente, como se ouvissem música; outras colocam o dedo indicador sobre os lábios, ou ficam a olhar para o chão arrastando o pé direito, como a procurar algo perdido no tempo ou no chão.

         Dobro seguindo a Rua do Bom Jesus em direção a rua Cais do Apolo. Os marinheiros tentando conversar com as meninas, um contraste de idiomas que ao final se entendem, como num milagre. Dólar é a palavra mais sussurrada.

         – Twenty dolar

          – No, Fifteen dolar. - Responde o marinheiro, querendo baixar o preço da beleza e juventude da menina-mulher.

         Continuo andando. Na esquina da Rua da Guia alguém me interpela:

         - Seu moço!

         Voltei o olhar para o chamado.

         - O que você disse?

         - Seu moço, não quer se divertir um pouco?

         - Já estou me divertindo, curtindo a beleza das meninas.

         - Posso lhe dar mais prazer do que apenas observar.

         - Vamos passear um pouco?

         - Vamos até a praça Tiradentes.

         Saímos devagar. Quando passamos sob a luz do poste, verifiquei que era de rara beleza. Tipo cigana, morena de olhar acinzentado, cabelos negros de leve ondulado, caindo por cima dos ombros, cobrindo a gola da blusa. Os dentes alvos, lábios pouco roxeados e de sorriso fácil, polpudos, queixo afinado.

         - Seu moço é diferente!

         - Como?

         - Calado. Não perguntou o preço.

         - Não disse que faríamos amor. Estamos passeando.

         - Seu moço, não posso perder tempo. Se não está com vontade de se divertir, volto para  meu canto.

         - Calma! Você não disse nem seu nome!

         - Ritinha.

         - Ritinha, você veio de qual interior?

         - Seu moço, minha vida é um segredo.

         - Eu gosto de segredos!

         - Têm cigarro importado?

         - Não gosto de cigarros importados,  são fracos.

         - Então, me dê este mesmo.

         Chegamos à Praça Tiradentes.

         - Ritinha, estou hospedado na Praia da Boa Viagem. Quer ir até lá?

         - Que chique. Mas... não combinamos o preço.

         - Você está apressada!

         - Vivo disso, né! Negócio é negócio.

         - Que coisa horrível! Então, está certo. Você é quem vai dizer quanto vale na cama.

         - Eu disse que seu moço é diferente, tá certo? Na cama, eu sou mais eu.

         Pegamos um táxi e fomos para o hotel.

         No quarto, conversamos sobre trivialidades. Ela se movimentava com ligeireza, própria da juventude. Sempre muito alegre. Sentia-se como se estivesse em casa. Tirou a saia e a blusa. Ficou de calcinha.

         - Que contraste esta calcinha vermelha?

         - Eles preferem esta cor, seu moço. Não gostou?

         - Não me importo, embora prefira a cor branca.

         Foi à geladeira e procurou algo.

         - Não tem champanhe?

         - Você tem gosto apurado! Pedirei uma.

         - Posso tomar um uísque. Se for mais barato.

         Telefonei pedindo a champanhe

         - Você é de menor, não é?

         - Ela me desmentiu severamente.

         É claro que mentia. Não queria que a mandasse embora.

         - Ritinha, não me ponha em dificuldades.

         - Olha pra mim, seu moço. Tenho cara de menina?

         Mostrava-me seus seios fartos, morenos, com bicos entumescidos.

         - Tem sim. Tem cara de menina!

         - Mande trazer um cigarro fraco. Este é muito forte.

         Desconversou.

         - De onde seu moço vem?

         - Já lhe pedi que me chamasse pelo nome.

         - Deixe eu te chamar assim, é o meu jeito.

         - Do Rio de Janeiro, sua moça.

         Ela deu uma risada gostosa.

         - Fui passada com quinze anos!

         Falou sem que eu perguntasse. Eu brinquei com a expressão ingênua.

         - Passada? O que quer dizer?

         Claro que sabia. Queria que ela falasse, com aquela sensualidade e o olhar  esparramando desejos.

         - Fui furada com quinze anos, entendeu?

         - Furada? Brinquei de novo. Você quer dizer: tornou-se mulher?

         - Engraçadinho. - Disse, segurando o meu queixo e beijando o meu rosto.

         Achei estranho o beijo no rosto e não na boca, mas a deixei à vontade.

         - Música, seu moço, gosta?

         -Claro. Pode ligar o rádio.

Antes que terminasse a frase ela já estava de joelhos na cama, sintonizando o rádio. Suas coxas dobradas e a bunda empinada eram muito sensuais. Passei a mão em suas costas acompanhando uma leve penugem.

         - Quer agora?

         - Calma. Estou fazendo carinho, tem tempo.

         Era uma música com ritmo cubano. A voz rouquenha do cantor dava um ritmo especial no conjunto. Ritinha dançava levantando os braços, rebolando em suaves movimentos. Às vezes voltava rápido a cabeça para um lado ou para o outro. Esqueceu-se de mim. Dançava para ela mesma, dando voltas ao redor da cama. Os seios quase não se mexiam, como se fosse uma dança flamenca, sem gestos violentos. Contorcia um ombro para cima e o outro para baixo. Depois invertia o ombro com o mesmo gestual. Abaixo da cintura, sua penugem fina e a calcinha de renda permitia divisar sua vulva. Tirei a roupa e comecei a dançar desajeitado. Ignorou-me, pois estava ausente. De repente, falou alto ao meu ouvido:

         - Dança, seu moço, a vida não é mais que uma dança. Vamos nos divertir, enquanto não chega a tristeza.

         Entreguei-me ao ritmo. Ela me ensinava a dançar. Era uma dança de esquecer tudo à volta; uma dança de esquecer as dores e os problemas do mundo; uma dança frenética. Nesse clima, comecei a beijar-lhe o pescoço e os mamilos, terminando na cama sob um sexo embriagador. Ao após, entreguei-me a um silêncio de paz, com a ausência total do eu interior. Depois de um bom tempo, ela sussurrou:

         - Seu moço sabe fazer as coisas. Não é tímido como parece.

         Acordei do alumbramento e descobri que ela era demais.

         - Ritinha, você me levou aos céus.

         - Nada disso, seu moço. Estamos na terra mesmo.

         - Sua dança é misteriosa, cheia de sensualidade e de lamentos.

         - Você é observador.

         Fitamo-nos por alguns segundos.

         - Você é triste, por quê?

         Ela se assustou, baixou a cabeça, mas logo recuperou a alegria.

         - Porque ainda não jantei.- Seguindo-se uma risada de deboche.

         - Disfarçou bem a pergunta. Vamos jantar?

         - No quarto, por favor. Não quero sair.

         - Não quer ir embora? Como, se você ficando aqui deixa de ganhar dinheiro? Afinal, o luar está convidativo...

         - Você fala sério? - Perguntou, com ares de irritação.

         Fiquei em silêncio fitando um pequeno quadro dependurado na parede, sem responder.

         - Olha, seu moço, quer saber duma coisa? Há tempo não me sinto tão feliz com um freguês.

         Olhei dentro de seus olhos plúmbeos. Faiscavam de felicidade

         - Queria ouvir isso de você. Também estou contente em sua companhia.

         - Esses homens... é, nem precisa falar, né? Não gosto de ser maltratada. Aliás, ninguém gosta, concorda?

         - Claro que concordo. Mas por que fala assim?

         - Você é muito gentil. É difícil encontrar um homem como você. Depois que eles gozam, só faltam bater na gente.

         - Você é uma menina inteligente, sensível e humana. Eu... que posso lhe dizer, senão agradecer o elogio?

         Solicitei os serviços da cozinha. Em pouco jantávamos, alegres como namorados. Falamos sobre Recife, suas pontes e a diferença de Veneza.

         - Não gosto destas comparações. Mas os brasileiros adoram comparar nossas paisagens com as estrangeiras.

         - Seu moço é muito exigente. Não devemos ligar para isto. Que importância tem?

         - Você não liga prá nada, não é? Você se importa com o quê?

         Ela silenciou. Mudei o assunto e voltamos a jantar. Conversamos até tarde, até que bateu o sono.

         - Não combinamos o preço, seu moço.

         - Será possível que só pensas em dinheiro?

         Ela me pediu desculpas, sem me convencer, e adormecemos.

         No dia seguinte, paguei-lhe e nos despedimos.

         - Quando voltar a Recife, me procure. Estarei no mesmo lugar.

         -Está aqui meu telefone. Vou a Paris e dentro de oito dias estarei no Rio. Ligue-me a cobrar, ok?

         Deu-me um beijo rápido e saiu toda faceira. Na porta do elevador, abanando a mão com graça e jogando um beijo:

         - Me procure!

         Corri à janela do quarto. A claridade do sol era intensa. A Praia da Boa Viagem estava mais bela que nunca. O táxi parou frente ao hotel e vi Ritinha embarcando. O carro saiu em disparada.

         Assim que o táxi desapareceu, senti uma sensação de vazio. Enquanto tomava banho e vestia o uniforme, este sentimento ardia no peito.

         Comecei a culpar-me. Por que paguei para ter sexo? Isso nunca acontecera antes. Mas a culpa não foi por causa do pagamento. No dia-a-dia, tantas opiniões nos invadem sobre esta questão, coisas absurdas como “a esposa é a prostituta mais cara que existe”; “é como pagar um jantar, você se diverte e pronto”; “tudo na vida têm um preço”. Não, eu não estava preocupado com isso. Precisava descobrir o que me afligia.

         Em dois dias, embarcava para Paris.

         Mesmo amando essa cidade, senti uma nostalgia profunda. Isso mesmo, nostalgia. Saudades da terra. Peguei o metrô e fui a Pigalle. Subi a rua que dá em Montmartre, observando os pintores nas calçadas, ouvido os sons que emanavam dos bares. Tomei uma cerveja quente e ouvi os jovens cantando nas escadarias da Igreja Sacré-Couer. Lá de cima, fechando os olhos, via Ritinha dançando como uma garça morena tentando alçar vôo. Com suas mãos na altura dos ombros e seios de fora. A nostalgia aumentava. Desci e passei frente ao Moulin Rouge. Segui adiante e nas esquinas as prostitutas convidavam para o sexo. Observava-as e fazia comparações com a “minha nordestina”. Confesso que me apavorei, ao descobrir que me recordava demais de Ritinha. Comecei a inventar coisas para distrair-me. Nem os grandes boulevares, o Quartier Latin, ou o fascínio que envolve aquela cidade me distraíam. Teria ela ligado para casa? Quando o avião pousou no aeroporto do Rio, mal continha o desejo de chegar em casa e perguntar à empregada se recebera algum telefonema do Recife.

         Nada. Apenas notícias de um ou outro amigo, que pouca atenção me despertava. Censurei-me pela tortura que eu próprio me impusera, fazendo críticas acerbas sobre o meu comportamento. "Vais tirá-la da rua, montar uma casa e considerá-la tua esposa? Ela já se acostumou a deitar-se com todo tipo de homem e não vai se sujeitar a um só. Tantas meninas inocentes e bonitas neste mundo querendo um casamento e escolhestes uma puta? Nunca pensastes em casar, que história é esta?"

         A verdade é que não existe remédio, quando gostamos. Nem os mais sábios filósofos ou amigos convencer-nos-ão em sentido contrário, quando a alma toma a resolução de gostar de alguém. A razão só funciona no campo da razão. No que podemos administrar sem o coração. Não há remédio, o homem que ama é um ser irrecuperável.

A noite sonhei que estávamos os dois em um barco pesqueiro a sós e com o motor ligado navegando. Quando eu largava o leme e começava a beijá-la em segundo via os arrecifes na nossa frente. Ao desligar o motor um bando de moleques banhando-se, invadia a embarcação e ficava a fitar-nos com risos de deboche. Espantava os moleque, ligava o motor e lá vinham os arrecifes de novo a nossa frente. Acordei suado de tanto sacrificio sem conseguir ter sexo com ela.

O telefone não tocava, e quando acontecia eram pessoas desinteressantes. Aquilo me afligia e fazia-me sentir diminuído. “Quem pensa que é, esta mulherzinha safada” Vai mexer comigo? Até hoje ninguém conseguiu me laçar. Com a voz suave fazendo estilo e me chamando de “seu moço”, “seu moço”. Ela que vá a merda, esta pobretona que só sabe perambular pelas ruas a procura de uns trocados. Cigarro fino! Cigarro fino! Puta lá tem escolha? “Meu Deus como posso ficar dizendo estas coisas, eu que nunca fui preconceituoso com nada, que lado feio está surgindo em mim?

Ela dançava com aquela bunda morena, arredondada, com a fina penugem encaminhando meus olhos para o fim ou o principio dos meus desejos, sem dar importância se eu gostava de como dançava.

Volto a Recife e vou transar com ela quantas vezes queira. É barata, posso comprar todos os momentos que queira. É melhor assim. Nunca enjoaremos um do outro. Quando sentir “vontade” dou um pulo a Recife e estamos resolvidos. Ela não me cobrará se estou saindo com outras mulheres nem dirá que o preço do feijão está caro, nem que minha roupa é difícil de lavar. Nunca haverá queixas de que um ou outro está demorando no banheiro nem terei de esperá-la frente as lojas enquanto ela for comprar suas quinquilharias.

Frente a rua da guia, com ar aparvalhado não a encontro. Vou até a praça Tiradentes e fico durante bom tempo. Volto a  rua da guia e continuo a esperar. Com quem teria saído? É possível que esteja com algum velho endinheirado, porco, que a esposa enjeitou. Nesta hora deve estar jogando as frustrações em cima dela. Será que estão bebendo champanhe? Não! Estes velhos são uns sovinas. Só sabem falar mal de suas mulheres, assumindo um papel de vítima. As vezes nem tem sexo. É isto! Estão apenas conversando. Coitada de Ritinha. Ouvindo lamúrias sem o menor interesse. Quando isto acontece elas nem tiram a roupa. Ficam sentadas enquanto eles deitados de gravata falam sem parar. A prostituta também é uma psicanalista. E, se ele resolver contar sua estória desde a infância? Estou roubado. Vou ficar de molho aqui, até Freud balançar os ossos do túmulo.

Faço mil conjecturas. Como estou ansioso para vê-la! Ela deveria ter um telefone para que a avisasse que viria. Pode ser que ela esteja com algum moleque que arranjou dinheiro com o pai. Vai ver que ele nunca teve sexo e está experimentando pela primeira vez. Ficam enchendo a paciência da mulher, fazendo todo tipo de pergunta. Se ela goza com os fregueses. Se não tem vergonha de estar nesta vida. Gozam duas ou três vezes para aproveitar bem o dinheiro que está pagando. Só faltam virar a mulher pelo avesso e elas são obrigadas a se sujeitarem ao que lhe impuserem. Moleques safados! Depois  contarão vantagens nas ruas para os seus amigos. Vão apontá-la quando passar. Merda! Sinto um misto de ciúme e desapontamento. Reflito que ela não está aí só para esperar-me. Durante duas horas e meia contei os postes da Rua bom Jesus passando pelo ponto na Rua da Guia.

Quando chegou veio com um riso de safada dizendo:

- Seu moço, que beleza, de volta a Recife? Como você trabalha!

Fiquei com vergonha de dizer que não estava alí a trabalho.

- É verdade. Trouxe um perfume pra você de París.

Ela não se conteve e abriu logo a caixa experimentando o perfume. E borrifando um jato sobre minha camisa.

- Não faça isso, tenho dor de cabeça com perfumes. Aliás não se joga perfume na roupa, sua bobinha.

Ela nem se importou com minha “lição” de como se usa perfume.

- Que delicia, seu moço, tem cara de ter custado caro. Detesto coisas baratas, de pobre.

Dei uma risada. Como ela poderia detestar as coisas de sua própria classe social.

- Eu sei o que você está pensando. Sou pobre e já fui miserável. Não é por isso que vou gostar do que não presta. Cheguei aqui com um vestidinho de chita horrível. Hoje nem pensar! Se você quiser me dar um vestido, tem de ser de seda ou algo parecido. Caro. Se for barato não visto.

Falando com sotaque carregado, sobre o nojo da pobreza. Tornava-se mais engraçada ainda. Ela vendo-me sorrir, também desatou uma risada e falou com a maior naturalidade.

- Sou puta mas não sou burra, seu moço.

Fiquei pasmo com a naturalidade com que falou. Tenho certeza que o resto do meu sorriso foi amarelado. Caí na dura realidade que estava gostando dela. De uma prostituta sem a menor vergonha de sê-lo.

- Vamos pegar um taxi para o hotel.

A frase afirmativa fez com que ela se voltasse rápida e confessasse:

- Tenho um freguês que vem me ver.

Fiquei desapontado. Não era possível que vim do Rio de Janeiro para ver aquela mulher e me desprezava por um simples freguês. Tentou amenizar a situação.

- Vai ter aquela champanha gostosa? Indagou, com seu olhar sensual.

- É claro!

- Vamos embora

E, agarrando o meu braço, arrastou-me até o taxí. Atordoado, fazia mil análises.

”Quase ficaria esperando-a atender um outro freguês. Ela por momentos ficara em dúvidas se sairia com outro, ou não. Preferia sair comigo porque beberia uma champanha cara.” Como eu deixara minha auto-estima cair. O que pretendia com essa mulher que não se importava com o “presente”, nem projetava um “futuro decente”. No hotel quando referi-me a estas questões ela sorria e despreocupada dizia;

- Seu moço, vamos viver a vida sem grandes preocupações. Nada vale a pena além de viver intensamente. A partir de hoje não lhe cobrarei pelo meu corpo, mas não esqueça de trazer-me presentes bons, coisas importadas, nada que lembre roupa de chita, hein?.

E deu uma risada gostosa, de causar inveja a qualquer pensador que vive analisando os problemas existenciais. Depois enroscou-se no meu pescoço, puxando-me para a cama.

O que mais um homem deseja? Uma profissional do sexo confessar que não aceitará pagamento? Isso não é amor? Se não for, como ela convencerá que ama alguém? Minha felicidade era ilimitada. E o resultado na cama não poderia ser melhor. Mandei buscar a melhor champanha do hotel e bebemos na maior felicidade.

No dia seguinte, embarquei para o Rio na decisão de tirar férias e retornar a Recife. Nada disse para que a surpresa fosse completa.

Eu tinha certeza que Ritinha me mentira sobre a sua idade. Ela deveria ter uns dezesseis anos. Mas o seu corpo bem formado dissimulava a pouca idade.

Na china sei de meninas de dez ou doze anos de idade que trabalham em prostituição. Algumas eram escolhidas apenas para fazer felação.

No Oriente, especialmente na China, o sexo e as mulheres eram abundantes.

Havia muitas chinesas, japonesas, coreanas e indochinesas entre meu grupo de amigos. As garotas chinesas eram mais agradáveis. Haviam meninas escravas que pertenciam a um senhor, como parte de uma propriedade. Elas geralmente tinham de servir relaxamento, entretenimento e sexo. Esses lugares não devem ser confundidos com as casas de chá, onde as garotas são muito bonitas, amadurecidas, bem-educadas talentosas e livres. O sexo não era acessível nesses lugares, apenas companhia e entretenimento. Mas em outros as garotas muito jovens: começando com cerca de dez anos, aos dezesseis já eram consideradas um investimento não muito bem, acima de dezoito não tinham procura a menos que fossem muito especiais. Mesmo assim nunca havia nenhuma com mais de vinte. Elas eram compradas quando muito novas dos camponeses ou famílias de trabalhadores, postas para trabalhar com cerca de dez anos de idade, introduzidas ao sexo, e pelos dezesseis eram as mais conhecedoras e experientes.

Nunca recebiam dinheiro por seu trabalho. Eram obrigadas a fazer o que fosse requerido delas ou eram castigadas com açoitamento ou privação de comida e sono por um dia ou dois. Contudo, apesar de tudo isso, pareciam estar bem felizes, amistosas, agradáveis e ativas.” O dono do estabelecimento é quem recebia o dinheiro.

No Brasil, muitas meninas saem do interior e vêm para a cidade. Ou são expulsas da casa dos pais ou a necessidade obriga que elas abandonem o lar para diminuir a despesa da casa. Grande parte dessas meninas manda dinheiro para o lar, quando sobra algum das suas despesas. Nunca dizem de onde vêm para não deixarem pistas do seu rastro e quase todas trazem um travo amargo quando tem de falar sobre suas famílias. Deixam de estudar, se o faziam, e não projetam qualquer futuro.

Eu tinha certeza que Ritinha não era exceção desse quadro.
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Quando cheguei ao Rio fui direto a empresa que trabalhava e pedi minhas férias. Enquanto cuidava dos trâmites para a viagem aguardava o telefonema que nunca veio. Já me acostumara com o seu silêncio. Mas estava feliz porque a primeira batalha já havia ganho. Ela não era a minha prostituta. Não me cobraria por seus beijos, carinhos e sexo.

Ritinha o meu amor te salvará desta vida. Não terás que ficar no Cais do

Apolo aguardando marinheiros nem turistas que vem apenas em busca do sexo. O meu carinho fará você esquecer os maus tratos da casa de teus pais. Uma vida “digna” sem fome a roer o estômago ou a obrigarem a fazer o que não quiseres. Darei a você os melhores perfumes e vestidos e serás a rainha do nosso lar.

Pensando em tudo isso passei os meus dias aprontando as malas, comprando presentes, preparando coração-mente e quinquilharias para uma grande estadia.

Recife, chamada de capital nordeste com clima tropical, quente e úmido com estilo arquitetônico, manuelino. Baseava-se no gótico tardio ou flamejante e na decoração de motivos alusivos aos descobrimentos. Recife do sol, do carnaval, das pontes que traz um ar romântico, especial. O desenvolvimento da capital e as pressões demográficas da zona rural deram origem a um processo de êxodo acelerado, acarretando, na cidade, altas taxas de desemprego e subemprego. Os grupos marginalizados passaram a construir suas habitações nos mangues e elevações, formando mocambos, aglomerados onde vivem em precárias condições.

Recife dos mascates, do Cais do Apolo, de Ritinha.

Quando cheguei fui direto ao hotel, deixei as malas e fui procurá-la para dar-lhe as boas novas.

- Seu moço, aqui de novo tão rápido?

- Vim para ficar contigo no mínimo trinta dias.

Ela surpresa com a notícia.

- Seu moço, tá doido é? Podia ter me avisado.

Quando ela sentiu o meu desapontamento pela frieza em que fui recebido, tentou dissimular.

- Ora, vamos dar um jeito nisto. O senhor fica no hotel, que apareço assim que puder. Não me demoro.

Puxou minha cabeça e deu-me um beijo. Havia uns marinheiros rondando äs ruas que na escuridão pareciam pinguins. Deixei a rua da guia e voltei, desapontado, para o hotel. Fiquei esperando o resto da noite e ela não apareceu. Cada espaço do quarto eu visualizava Ritinha. Ela dançando, as vezes de costas com seu corpo bem formado sua bunda arredondada, suas pernas firmes e os braços caindo levemente abaixo da cintura, seus seios morenos e rijos os cabelos bem negros as vezes cobrindo quase todo o rosto e de vez em quando ela guardava-os atrás das orelhas miúdas que eu gostava de mordiscar.

Sabia que havia algo ou muita coisa de errado no meu sentimento. Tentava descobrir o que me encantava naquela mulher. Ela tinha um jeito independente, um tanto de libertina, parecia que o mundo era seu. Corajosa, não demonstrava ter medo de nada. Opinião forte e sempre dona da situação. Sem deixar de ser bela, sensual e feminina.

Na noite seguinte ela chegou apressada.

- Seu moço se arrume que vamos sair.

Discutimos. Queria estar a sos com ela.

- Você não vai ficar a vida toda neste quarto de hotel, vai?

Foi a primeira vez que chamou-me de você.

Troquei de roupa e sai meio chateado. Pegamos um taxi e ela falou algo para o motorista que não entendi. Pouco estava me importando qual o destino. Sentei-me afastado e ela se achegou com voz macia beijando o meu rosto.

- Seu moço, não quer saber tudo de mim? Como podes gostar se não conheces o meu mundo?

Não sei o que respondi. Havia um tumulto em minha cabeça. Quando descemos do taxi ela puxava-me pela mão e ingressamos em um cabaré. Houve grande receptividade. Todas as mulheres a cumprimentavam:

- Aí Ritinha, está desaparecida.

- Vai ficar rica, hein. Não para de trabalhar!

Havia um cheiro específico no ar, não conseguia identificá-lo. Homens gordos vestidos de ternos de linho branco, fumando grossos charutos. Cortinados de veludo vermelho em paredes inteiras, pareciam salas de cinema antigo. Lustres com luzes murchiças que não permitiam identificar quem estava um pouco distante. Mulheres e mais mulheres com vestidos dos mais diferentes. Muito colorido que produziam uma desordem visual. As vezes os vestidos eram colantes, com grande rasgo, deixando entrever as coxas, outros compridos e rodados, com luvas nas mãos. Bijuterias douradas em cima de blusas verdes, aparecendo um corpete por baixo das blusas. Marinheiros em grande quantidade falando o ingles bem lento para que elas entendesses. Cheios de gestos abusados querendo enfiar a mão por baixo de seus vestidos, ou acariciando os seios delas. Alguns jogavam cartas em cima de pequenas mesas coberta com feltros de azuis ou verdes vivos. Quase todos sorriam ou falavam, espalhafatosamente. Ritinha puxou-me até uma mulher que estava sentada e ausente do burburinho.

- Seu moço, esta aqui é Luziara, foi ela quem me ajudou quando cheguei no

Recife. É uma grande amiga. Ela sabe de todos os meus segredos.

- Bobagem, Ritinha. Você é quem lutou e venceu.

Luziara não era tão jovem quanto Ritinha. Era bela, com ar sofisticado. Tirou uma das luvas e cumprimentou-me, respeitosamente. Ritinha pediu licença e disse que iria trabalhar um pouco. Iria se vestir. E desapareceu na multidão. Fiquei sentado junto com Luziara.

- Não vou atrapalhar se ficar sentado aqui?

- Absolutamente. Será um prazer.

Houve um espaço de tempo em que ficamos em silêncio, ouvindo apenas o burburinho do grande salão. Depois ela perguntou inesperadamente.

- Estás apaixonado por ela, não?

Fiquei confuso em responder, mas com a tranqüilidade e certeza de suas palavras respondi.

- Sim, Luziara, Creio que sim

- Comprou uma briga feia, meu amigo. Ritinha é uma azouge. Ninguém consegue dominá-la sem que ela queira, realmente. É amada por todos. A luz do cais do Apolo.

- Entretanto, tem horas que ela passa um bocado de tristeza.

- Todos temos problemas, sobre o seu coração, não posso falar.

Neste momento Ritinha desceu uma escada de corrimão de madeira vestida como as outras, houve murmúrios sobre a sua beleza. Ouvia-se a sua risada espontânea em todo salão. Dirigiu-se a mim e com um vidro de perfume espirou na minha camisa.

- Ritinha, esqueceu que sou alérgico a perfume?

- Desculpe, seu moço. Olhe não se importe com minhas brincadeiras aqui. Estou trabalhando e estes homens todos são lixo. É diferente do que sinto pôr você, tá?

Não entendia o por que elas usavam chapéus com plumas e tantos adereços, parecendo figuras antigas.

- Mulher quem te deu tanta beleza?

- São os seus olhos, seu moço. Deu uma risada e foi para o meio do salão.

Chegou uma negra esbelta, com dentes bem claros e perguntou-me:

- Não quer se divertir?

Luziara interrompeu, não Paulina ele é amigo meu e de Ritinha.

Estou apaixonado, Luziara. Ritinha virou a minha cabeça.

- O amor é assim mesmo, amigo. Gosto de um homem casado e ele também me ama. Entretanto falta coragem dele enfrentar os preconceitos. A mulher dele sabe. E creio que todos da sua família. Tantos homens aparecem aqui e muitos querem que eu mude de vida. É inútil. Veja a Paulina gosta de um homossexual.

Morre de ciúmes quando ele vai sair com outro homem, mas o que fazer?

- E a Ritinha?

Ela calou-se. Depois de um bom tempo falou.

- Foi expulsa como tantas outras da casa dos pais. Morava lá pras brenhas do interior. Sofria como uma desgraçada. Fome e necessidade de toda sorte.

Quando chegou aqui não tinha nem onde dormir.

- E o seu coração, gosta de alguém?

- Só ela poderá falar.

Olhei para o salão e Ritinha estava sentada no colo de um homem. Senti um ciúme desesperador. E Luziara percebeu.

- Não se desespere. Você não está apaixonado por uma mulher comum. Ela realmente é especial.

Estava pensando justamente isso. Por que eu não me apaixonara por uma mulher “séria”, que ficasse em casa se guardando só para o meu amor. Eu tive esta experiência várias vezes. Ao fim me cansava da “coisa” certinha. Vinha um tédio que não conseguia suportar. O cotidiano. As mesmas palavras e gestos. Quando elas iam dizer algo, eu já sabia o que falariam e as respostas eram as mesmas. Muitos homens se acostumavam a monotonia. Com esta morte em vida. Sabia como elas gostavam de ter sexo, suas posições inalteradas, gemidos e palavras na última hora. Nada mudava. E quando eu tentava sair da mesmice ou era repreendido, ou não aceito, caso conseguisse depois ficava de cara amarrada como se eu tivesse praticado um grande pecado. Confessei isso a Luziara.

- O bem e o mal está dentro de nós, meu amigo. Ou melhor Deus e o diabo querem conviver dentro de cada um. Para que o homem seja uno, íntegro. Se faltar um destes elementos ele fica incompleto. E nasce a infelicidade.

- Queres dizer que se Ritinha fosse dócil, submissa eu não a amaria?

- É exatamente isso. Poderias ficar com ela por algum tempo, mas depois irias sentir falta dos embates que o homem necessita. Ela tem a liberdade que tu querias ter, a coragem, “aquilo que contraria as boas normas” isto que você está repleto que comanda tua vida e já não agüentas mais. Entretanto, vais tentar enquadrá-la dentro destes costumes. Tentar domá-la, como a um poltro novo. E, se, desgraçadamente, conseguires irás enjoar.

- Luziara você esta me deixando doido. Queres dizer que só gosto de Ritinha porque ela é prostituta?

- Não é por causa disso. É por que ela é indomável.

Quando olhei para Ritinha ela conversava com um marinheiro, falando algo engraçado, pois ria ser parar. O olhar dele era de encantamento. Ela estava com um copo de bebida na mão, mas eu sabia que ela poderia beber a vontade pois nunca sairia de sua lucidez.

- Luziara você é uma mulher bela e inteligente.

- Todas estas meninas saíram das brenhas, dos mangues, mocambos. Nasceram com o instinto do desafio. Se fossem passivas estariam lá, casadas com pescadores de caranguejos cheias de filhos. Ela também iria para o mangue ajudar os maridos. Agora, estão aqui. Cheirosas aprendendo coisas que jamais imaginaram. Não digo a você que aqui é o melhor lugar. Mas lhe afirmo que o que aprendem aqui, nenhuma faculdade iria ensinar.

- Você é a mentora destas meninas? Luziara

- Apenas ajudo-as. Quando chegam aqui, desiludidas com a família, explico-lhes que isso não é a melhor vida. Mas, quando insistem em ficar, compro-lhes roupas, faço com que fiquem bonitas. É isso que elas querem. Alimento, beleza, e serem dona dos seus destinos. Foi assim com Ritinha. O primeiro vestido que ganhou era amarelo claro com branco. Ela ficou encantada. O resto o salão ensina. Quando chega um homem aqui. Só no olhar sabem se tem dinheiro, se são limpos, e o que está faltando em casa, se eles forem casados.

Sabem de suas culpas e muitas vezes nem querem sexo. Querem pagar estas culpas que não lhes deixam dormir. A Ritinha falou-me que o senhor também e um escritor? O que é ser escritor?

- É como se fosse um oftalmologista, tira a catarata do olhar da humanidade.

- Isso não é perigoso? Nem todos suportam a realidade.

- Nos livros que escrevo, na capa e contra capa vem explicando do que trato, o leitor nunca estará se enganando que vai encontrar uma historinha prá se divertir. É necessário fazer os outros pensarem, não?

- Sim, mas repito, é perigoso.

Neste momento três moças se aproximaram. Aninha, Amélia, e Ester

- Não quer se divertir um pouco?

- Não, ele já se divertiu o suficiente, respondeu Luziara.

- Vou-me embora.

Disse levantando-me ligeiro.

Avise a Ritinha que estou no hotel. Foi um prazer conhecê-la D. Luziara.

Saí desesperado daquele lugar. Quando peguei o taxi, veio uma lufada de ar puro que ajudou-me a recobrar os sentidos. As luzes das ruas eram fachos amarelos que transmitia estas cores nas paredes dos velhos casarios. No quarto tentei dormir mas só conseguia um sono perturbador. “ O homem precisa de Deus e o diabo dentro de si, para se sentirem vivos.” E, aparecia o semblante fino e sério de Luziara com seu cigarro nas mãos e na outra segurando a luva. De madrugada com a brisa fresca consegui adormecer. Foi pouco, eu sei, porque ao acordar o sol da manhã entrando pela janela queimava o meu rosto. Esquecera de fechar as cortinas. Lá estava o mar. O meu amigo mar que não permite que fique longe dele. Jovens correndo na beira da praia, anciãos caminhando tranquilos enquanto moleques de bicicletas em disparada assustava-me quando ultrapassavam um pelo outro, pareciam que iriam se chocar. O sol era tão forte que as espumas das ondas, geralmente prateadas, douravam, tecendo filigranas nas areias.

Almocei dentro do quarto e só, aguardando o telefone tocar. ficava olhando para ele as vezes com carinho as vezes com ódio. Como eu me prendera assim a uma mulher? Só podia ser o diabo mesmo. Com tantas mulheres bonitas no mundo como tornei-me escravo de uma puta? Depois, refletia e não queria aceitar meus próprios pensamentos. Ela é um ser humano especial que caiu nesta vida como um animal na floresta cai num alçapão. É isto mesmo. Ela é vitima de uma sociedade injusta que descuida das famílias que vivem no campo. Falta tudo pra eles, aí o pai desesperado, começa a ficar de mau humor e maltrata as famílias.

Ninguém agüenta tanto sofrimento, enquanto a TV, mostra belos casarões e mesas fartas, este povo desespera.

Fazia tantas conjeturas sobre a vida das prostitutas as vezes condenando as vezes defendendo com carinho a Ritinha, que chegava a ficar com os olhos marejados dägua. Depois do almoço desci e avisei na portaria que não iria demorar. Fiz tantas observações cuidadosas quanto ao telefone que a moça da portaria ficou admirada. Fui a uma joalheria próxima e comprei um cordão de ouro com uma pedra em formato de pequeno coração de água-marinha. Voltei rápido, orgulhoso com o presente. Ela ficaria feliz. Com certeza iria beijar-me, enroscar-se no meu pescoço e chamar-me, carinhosamente, de “seu moço”.

Adormeci com a pequena caixa na mão. Acordei com o telefone. Ela dizia-me que não poderia vir hoje ao hotel.

- Mas, Ritinha, ontem já não dormistes comigo, nem nos despedimos.

- Seu moço, apareceu um problema, que é impossível eu aparecer. Amanhã lhe dou notícias.

Não era possivel que ela estivesse fazendo isto comigo. Fui para a janela e fiquei entorpecido olhando o nada. O que teria de importante para faltar duas noites sem estarmos juntos? Dinheiro? Eu pagaria. Por quê então ela se oferecera dizendo que não ira cobrar? Arrependeu-se? Que falasse então. Abrisse logo o jogo e dissesse quanto precisaria para se sustentar por mês. Ela gosta. Gosta de variar de homem.

É isto, depois fica dizendo que tem necessidade de passar por esta vida. Viciou-se estar cada noite com homens diferentes. É assim mesmo. Elas chegam do interior com cara de bobinha depois se acostumam a safadeza. Diz que só beija na boca de quem ama. Conversa, diz isso a todo mundo. Luziara também falou-me isto. Elas são cúmplices. A cartilha é a mesma. E eu metido nesta lama. Estou sentindo tontura. Falta-me o ar. Meu Deus Ritinha queria que estivesses aqui comigo, para viver-mos uma vida decente. Poderíamos viajar para o exterior quantas vezes quisesses. Ter tudo do bom e do melhor. Até filhos. Sim por quê não? Seriam belos os nossos filhos. Eles puxariam a você com a pele lisa e bronzeada. Os cabelos negros caindo sobre o rosto com estes olhos ora cinza ora parecendo um um dia nublado com rasgões de azul. Sei lá... Ritinha eu te amo...

Fiquei horas e horas nestas divagações. A noite caíra. Estava prostrado na cama. De repente, levantei-me, apanhei o pacotinho com a jóia e sai. Quando dei por mim estava na Praça do Arsenal. No início da rua Bom Jesus. Começara a chover fortemente. Encostei-me na parede de um bar feito uma lagartixa. Mas, as costas e as pernas da calça não escaparam da chuvarada. Homens e mulheres rudes falavam alto. Era inevitável não ouvi-los:

- Você deixa tua mulher em casa e vem prá ca encher o saco da gente querendo regatear preço cara?

- Não mete minha mulher nisso! O que ela precisa eu dou, comida e trepada.

O que sobra eu gasto com vocês. Agora, não vou pagar tão caro por uma puta assim. Você já não é jovem nem gostosa. Não pode cobrar caro. Tem que se olhar no espelho.

- De cafajeste já estou cheia. Se não podes pagar o que quero, deixa o caminho livre, preciso trabalhar. Vai prá casa comer a mesma comida de todo dia.

- Você vai ficar apodrecendo aí a noite toda mulher e ninguém vai te querer!

- Isto é problema meu, porra! Saí da minha frente se não te quebro esta garrafa na tua cara. Merda! não paga o preço e ainda me chama de velha.

Deixei eles discutindo e saí me esgueirando pela rua Bom Jesus. Procurava onde havia gente por perto ou escondia-me atrás dos postes. A chuva havia passado, e agora refletia as roupas as roupas coloridas nas pequenas poças dägua. Cheguei a um lugar que dava para ver o ponto de Ritinha. Lá estava ela conversando com um sujeito de calças brancas de linho e camisa preta. Não dava para ouvi-los, mas pelos gestos largos ela estava enfurecida. Acendi um cigarro tapando a claridade do fósforo para que não fosse identificado. Agora, era ele que falava, parecia que falava macio para acalmá-la. Ela interrompia, ainda com gestos furiosos. Tive vontade de me aproximar. Dizer que ela era minha. Entretanto, precisava ver o desfecho daquilo. Ela também dissera que não podia me ver naquela noite. Eu não tinha o direito de invadir sua vida. Deveriam estar combinando preço, também. Meti a mão no bolso e a caixa da jóia estava toda molhada. Fiquei olhando para a caixa com carinho e desespero. O que mais queria esta mulher? Estava em suas mãos deixar esta vida de rua. Estes conflitos intermináveis que deveriam ser todas as noites. Quando levantei os olhos, quase Ritinha me viu. Estava passando de braços com o homem que discutira. Conversavam amigavelmente, paravam beijavam-se na boca e seguiam. Conforme eles passavam eu ia mudando a posição rodeando o poste. E as lágrimas foram inevitáveis.

Quando cheguei ao quarto estava esgotado, pensei em arrumar as malas e voltar ao Rio. Naquela hora, entretanto não havia avião. Tirei a roupa, ainda, úmida tomei uma ducha quente e deitei-me. A solidão do quarto invadira a minhälma ou vice-versa. Nada correspondia comigo. Eu não era a pessoa de outrora, a que raciocinava com lógica e resolvia com tranqüilidade as questões.  Desejo de voltar a ser o que era. De ter forças para tomar äs rédeas do meu destino. Adormeci pensando em todas estas coisas e acordei com pancadas na porta.

- Seu moço, o gerente do hotel queria barrar minha entrada. Isto é um abuso. Não disse a razão mas eu entendo, ora se entendo. Estes moralistas de merda não perdem a oportunidade de nos empurrar para a lama. Diga alguma coisa a ele. Diga.

- O que vou dizer a ele, Ritinha?

- Qualquer coisa para me defender. Diga que sou sua noiva!

- Noiva? Desde quando você quis ser minha noiva?

- Diga a ele, para que não fique sem resposta.

Peguei o telefone interno e mandei chamá-lo.

- Não queria que ninguém o aborrecesse em seu sono Senhor.

- Não, ela não me aborrece. Quando chegar a portaria deixe-a entrar. É a minha noiva.

- Sua noiva? Pensei que...

- Tudo bem meu amigo, não a desagrade mais, por favor.

Ela aproveitou que eu estava na beira da cama, quando terminei o diálogo, empurrou-me forçando-me a deitar e veio por cima de mim.

- Seu moço, seu moço estava morrendo de saudades.

- Está bem Ritinha, deixe-me tomar o banho e fazer o desjejum.

- Nossa! Como seu moço é programado!

E começou a beijar-me e a fazer carinho por todo corpo. Esqueci de tudo e entreguei-me aos meus desejos.

Não disse nada a ela sobre a noite anterior. Não queria estragar aqueles momentos. Coloquei o cordão no seu pescoço. Ela saltitava de alegria frente ao espelho do banheiro. Repetia sem parar que nunca recebera um presente carinhoso como este. Falei-lhe da possibilidade de vir para o Rio comigo e vivermos uma vida a dois. Uma vida decente. Onde ninguém lhe conhecia e ela poderia recomeçar outra vida. Estudar, freqüentar teatros, ter um  lar só seu. Senti um calafrio quando ela respondeu:

-         É tarde, seu moço, muito tarde. O preso só vê o carcereiro.

Que diabos ela queria dizer com aquilo? A quem ela estava presa? A vida que levava, a algum homem que amava ou a Luziara, que comandava psicologicamente äquelas mulheres? Em qualquer das hipóteses ela poderia escapar se realmente quisesse. Quem seria aquele homem que lhe beijava na boca na noite anterior? Não quis estragar o dia. Parei de fazer-lhe perguntas e propostas. Convidei-a a ir a praia. Descemos comprei-lhe uma roupa de banho, fomos felizes e sorrimos quando ela experimentava sua roupa de banho. Que belos seios e corpo. As vezes ela era de uma infantilidade descomunal, as vezes tornava-se séria e até tristonha. Mas quando eu a interpelava ela mudava com rapidez sua fisionomia que quase me enganava.

- Luziara gostou muito de você. Disse que se você tivesse aparecido em tempo real, você seria o homem para me casar.

- Que tempo real? O que isso quer dizer?

Ela ficou descontrolada. Sabia que tinha dito algo muito sério e queria remendar.

- Antes de cair na vida, né?

- Ritinha, quantas vezes já lhe disse que não sou preconceituoso. Não dou a mínima para opinião dos outros. Não são eles que pagam minhas dívidas.

Eu sabia que este diálogo era para encobrir algo muito maior. Mas não queria me imiscuir em sua vida sem que ela permitisse. Engraçado, uma noite de desespero, a espera interminavel, contando minuto a minuto, depois os pesadelos quando se consegue dormir. A chama do ciúme que arde dentro do peito. Todo sofrimento se dissipa quando encontramos a pessoa amada. Basta que ela sorria, volta imediatamente todas as esperanças que havíamos lançado fora. Sonhamos novos sonhos e a ferida aberta cicatriza como por milagre.

Estávamos em um dos restaurantes da praia da Boa Viagem. Quando passou um homem e foi ao banheiro. Notei que ele não era cliente da casa pois entrara no recinto após ver-nos almoçando. Quando retornou do banheiro ela viu-o passar. Ele ficou na calçada e ela pediu-me licença. Foi até lá e verifiquei que era o mesmo homem da noite passada. Ela dava algumas explicações. Olhou de lá para mim, despediu-se e desta vez não beijou-lhe a boca. Ela retornou fingindo tranqüilidade. Não perguntei quem era. Ela antecipou-se e disse: - É João Soares, amigo meu e de Luziara. Continuei a refeição sem comentários. Ela continuou a falar, agora, sobre as suas amigas. Citava Júlia Galega e a sua coragem, Falou sobre Paulina que de vez em quando batia no homossexual que amava. Contava que ele era mais mulher que  ela e falava dos seus gestos femininos, de suas roupas extravagantes e citava a frase que ela sempre repetia ao amante: “A desgraça da mulher é uma bicha”, referindo-se a sua própria vida. Eu simulava  estar me divertindo com aquelas estórias, mas no fundo sabia que elas escondiam algo muito mais profundo.

- Certa vez, Paulina e eu fomos trabalhar em Maceió e botaram a gente pra correr de lá.

- Ritinha você não tem nada sério pra me falar?

- Sério, seu moço, foi carregar lenha no interior e com nove anos trem me feito mal. O resto não é nada sério.

E começou a cantar baixinho: “Você dizia que me amava

                                                        Você me abandonou

                                                        O teu amor era um pedaço de papel

                                                        Caiu nägua e se molhou

                                                        Arranje outro amor que o meu

                                                        Já se acabou.

O seu olhar marejou e duas lágrimas caíram sobre a toalha da mesa. Mudei o assunto pois não queria vê-la triste. Após o almoço voltamos para o hotel nos amamos e depois adormecemos. Eu estava feliz assim como convicto de que havia muitas coisas que eu não sabia. Quem ama se engana com qualquer coisa. Não vê barreiras, tudo pode ser solucionado em nome da esperança. Quando acordamos Ritinha deu um pulo e disse. Vamos na Luziara? Fiz Vê-la que preferia ficar com ela curtindo a sua presença. Mas, havia nela um vulcão que não a deixava sossegada: “- Se eu ficar aqui vou beber.” Vamos sair repetiu fazendo carinho no meu queixo. Tomamos banho e fomos ver Luziara.

Lá fiquei sentado de novo junto de Luziara enquanto ela ria e trabalhava no salão.

- Luziara acho que não seremos felizes devido a diferença de idade.

- Não, não, Quando o amor tem de ser infeliz, ele acontecesse em todas as idades.

- Luziara, você não vai endoidar minha cabeça hoje não, vai?

- Sei que você gosta de dialogar sobre coisas sérias. Por exemplo, nós condenamos e marginalizamos estas mulheres defendo uma sociedade que foi exatamente ela quem as marginalizou. Aqui, na madrugada, vêm juízes, advogados, deputados, empresários, gente de todo tipo. Os casados sempre dão a mesma desculpa. “que suas mulheres são frias” “que passam dois a três meses sem terem sexo em casa” “elas reclamam que eles só pesam nisso e que não gozam com eles”. Quando nossas meninas passam por eles na luz do sol, ou em algum ambiente que estejam com suas famílias eles viram a cara em desprezo.

-         Luziara, quem é João Soares?

Ela mudou o tom de voz. Baixou o olhar pensativa e negaceou:

- Desculpe, mas só Ritinha pode falar sobre ele. Vamos falar do bem e do mal que todo homem necessita ter dentro dele. Ou da importância da paixão para manter o homem vivo.

- Você que me enlouquecer como da última vez?

- O ser humano não gosta de um relacionamento calmo. Ele busca isto quando está tumultuado. Quando encontra até convive com esta calma durante algum tempo. Depois começa o desejo de desarrumar tudo para arrumar de novo.

- Você acha que todos os homens são assim?

- Acho, principalmente os criativos, os que sabem que a vida não é uma linha reta. Matematicamente calculada.

Nesse instante vi, João Soares entrar no salão e arrastar Ritinha pelo braço. Tentei levantar-me para o interpelar, mas Luziara falou:

- Deixe-os, eles precisam conversar um pouco.

Não consigo lembrar do diálogo que tive com Luziara depois deste fato. Meu pensamento só via aquele homem arrastando Ritinha como se fosse um objeto salão afora. Sei que me despedi e caminhei pelas redondezas para ver se avistava Ritinha. Não sei quantas horas circulei pela rua Bom Jesus, Praça do Arsenal, Rua da Guia, Cais do Apolo. Nada. O desespero tomou conta do corpo e alma. Eu tinha que tomar uma decisão. Não era Ritinha que iria acomodar as coisas. Eu que não podia deixar me levar como um tronco boiando rio abaixo. Que mulher era essa que deixava escapar uma vida “digna” em prol da prostituição. Ela não era livre como dizia, estava presa a João Soares isso já estava bem clara no meu raciocínio. Ele a dominava e fazia dela um brinquedo. Sabia de todos os seus passos, eu também já estava sobre o seu domínio, pois ela só vinha me ver quando ele permitia. Tudo era controlado por ele. Não quero mais vê-la. Não posso seguir adiante. Sufocar o amor não correspondido é o correto e o mais difícil trajeto que o ser humano pode percorrer. Eu já tinha ido longe demais. Por quê a beleza nos prende tanto? Será porque somos feios e vazios, interiormente, e tentamos compensar? Merda! O homem deveria nascer completo! Para não sofrer e nem fazer os outros sofrerem.

No dia seguinte Ritinha chegou cedo ao hotel. Eu mal conseguira dormir. Notei que o lado esquerdo do seu rosto estava arroxeado. Ela tentara disfarçar com a maquiagem. Não estava com o cordão que lhe dei. Fiquei calado para ouvir suas explicações. Ela falava sem parar tentando dissimular o seu sofrimento. Ora fazia-se de engraçada, ora buscava uma segurança que não tinha. Por fim já exausto de tanta simulação perguntei-lhe de chofre:

- Ritinha, Quem é João Soares?

Ela baixou a cabeça e começou a falar, as vezes parava e o pranto descia convulsivamente:

- Foi a desgraça da minha vida, seu moço. Minha grande paixão. Por ele faço tudo, bebo, roubo, faço pessoas sofrerem, como o senhor. É o dono do meu destino. Ele é mau caráter, me bate quando não tenho dinheiro pra lhe dar. Sai com outras mulheres, sem se importar que eu saiba ou não. Ainda zomba do meu ciúme. Ele me persegue não por ciúmes, mas para saber se estou escondendo o dinheiro dos fregueses. Gasta todo meu dinheiro com drogas, bebidas e mulheres. Sofro e choro, enquanto ele ri e diz que isto é fricote de puta. Já não sei o que fazer para conquistá-lo fazendo com que ele me ame. Foi o único homem que não me amou. Mas espero. Cada dia espero que ele venha diferente. Me tire da zona para viver-mos uma vida só para nós. Longe de todo este chafurdo da rua da Guia. Agradeço, seu moço o carinho que o senhor tem por mim, a vontade de levar-me para o Rio. Mas ele é o meu destino e vou lutar por isto até o fim.

- Ritinha, ou melhor senhora Rita de Cássia... Você não está se punindo severamente pela vida que leva?

- Não, seu moço, o senhor não sabe da missa a metade. Nosso amor, ou melhor o meu amor é para a eternidade.

Não entendi, realmente, o que ela dizia, mas culpei as palavras que muitas vezes ela dizia sem nexo. E que muito me fazia rir.

- Vou-me embora para o Rio hoje mesmo Ritinha.

Ela ficou séria, levantou-se foi até a janela olhou o mar depois falou lacônica.

- O mesmo sol que atrai os turistas quando não mata seca.

Voltou da janela e num instante já estava brincando e se enroscando no meu pescoço.

- Ritinha, não...

Ela colocou seu dedo polegar na minha boca, e continuou a fazer carinho. Entregou-se de tal jeito que não resisti. Como eram lindos os seus olhos, cabelos, corpo inteiro. Parecia esculpida por grande artista, acrescentado da pele morena e do coração que batia descompassadamente. Fizemos um amor louco. Sabíamos que jamais nos veríamos novamente. Depois ela pegou o meu relógio em cima da mesa de cabeceira e leu a dedicação que estava atrás. “Uma lembrança de Aline”, perguntou-me:

- Alguém que você amou?

- Sim, mas um amor de uma amiga fraterna.

Olhei para o relógio eram três horas da tarde. Ela colocou tranqüila o relógio em seu pulso, vestiu-se, deu-me um beijo e saiu. Fiquei olhando-a cruzar a rua e desaparecer na multidão.

O que aconteceu comigo? Por quê esta paixão inusitada? Deveria saber desde o início que aquela situação desde o começo tinha tudo para falhar. Quando estamos em uma situação financeira, psicológica ou “moral” e vemos alguém se perdendo em um poço sem fim acreditamos que ela precisa de ajuda.

O que nos faz pensar que ela deseja mudar? Nós é que desejamos que ela se torne outra pessoa. De acordo com nossos valores e pensamentos. Quase todas as prostitutas são felizes. Apenas com raras exceções. Elas sabem o que a sociedade pensa delas, então desculpam-se de que desejariam mudar de vida. Dá-nos esta resposta porque é isto o que queremos ouvir. Se quisessem mudar de vida, mudariam ,pois ninguém  transforma uma pessoa em outra se assim ela não desejar. Em todos os grupos humanos há pessoas felizes e infelizes, isto não quer dizer que desejam ser outra pessoa que não queira. Eu queria Ritinha enquadrada dentro do meu padrão de conceitos e felicidade. Não a perdi porque nunca a tive. O meu sonho é que levou-me longe demais. Como eu precisava da beleza e da alegria dela para ser feliz. A sua liberdade causava-me inveja. Como a sua coragem de dizer o que desejava. Sem censuras. Descaradamente, ela dizia “Sim ou não”, sem ter medo de ferir. Nunca mais nós seríamos os mesmos, ela dançando como uma bela garça de asas abertas e seios nus.

Durante muito tempo assustava-me com um perfume quando uma mulher passava. E as lembranças vinham, imediatamente. Outras vezes a forma de um cabelo ou de um rosto fazia com que o coração acelerasse. Um hibisco amarelo compondo a forma de uma cabeça. Quantas vezes não andei rápido atrás de uma silhueta que acreditava ser dela. Só o tempo. O grande tempo, foi desvanecendo estes perfumes, estes sorrisos, estas sombras projetadas.

Durante uns vinte e cinco anos fiquei sem ir a Recife. Agora, estava de volta para um congresso de literatura. Tínhamos a noite livre, senti vontade de ir ao Recife antigo. Comecei a andar pela rua do Cais do Apolo. Como estava preservado o bairro, reformado, As ruas cheias de bares, cafés, restaurantes casas de show, danceterias. Jantei em um dos restaurantes na Bom Jesus e enquanto jantava passou um filme na minha cabeça. Como estaria Ritinha? Conseguira conquistar o seu grande amor? Guardaria traços da beleza juvenil? Não é somente os assassinos que um dia voltam ao lugar dos crimes. Os grandes amantes também. Há uma curiosidade em rever os grandes amores. Na maioria das vezes isto não deveria se consumar. Pois, o mito que criamos é divino, intocável. E, na realidade os grandes amores com o passar do tempo, tornam-se pessoas desinteressantes. A ponto de nos julgar-mos severamente “Meu Deus, foi esta pessoa quem tanto amei?” Mas algo nos instiga a rever o grande amor. Creio que seja a vontade do inconsciente de estilhaçar de vez aquela imagem. O amor de outrora não é aquela pessoa que amamos um dia. É alguém pálida, insípida, outra pessoa no espaço e no tempo.

Esquadrinhei todo aquele local, ora buscava a juventude perdida, ora o rosto da mulher amada. Quando entrei na Rua da Guia senti uma saudade profunda. As novas instalações confundiam minha cabeça. Senti-me um espectro buscando o corpo, ossos procurando a própria carne. Havia mulheres jovens que faziam sinais. Eu buscava os recantos em que havia me escondido para vigiar Ritinha. Como fora ridículo e apaixonado.

Em uma calçada havia uma senhora com aparência de setenta e poucos anos, não me contive e comecei a conversar:

- A senhora lembra onde ficava o cabaré de Luziara?

- Era naquele casarão rosado. O senhor é professor?

- Não, por quê?

- Porque vêm muitos professores pesquisar aquela época.

- A senhora conheceu uma morena bonita chamada Ritinha?

- Não é da minha época, mas conheço sua história.

- Como assim não é de sua época.?

- A Rita de Cassia do João Soares?

- Sim. Conheceu João Soares?

- Só a história.

- E, qual é a história?

- Ritinha éra apaixonada por ele. Um dia por ciúmes, suicidou-se. Deveria ter seus dezesseis anos. Depois o seu espírito veio busca-lo. Ele morreu não sei de que...

- A senhora está falando da Ritinha amiga de  Luziara, Paulina, Julia Galêga.?

- Qual é o problema. O senhor está espantado? É dessas mesmas que estou falando.

- Eu conheci Ritinha – falei sentindo um calafrio mortal.

- Não o senhor não pode tê-la conhecido, pois, foi muito antes do senhor nascer. Meu senhor, - continuou – Elas são mestras no candomblé. No nordeste elas baixam e dão consultas.

Verifiquei se havia traços de loucura ou de alcoolismo na mulher. Ela falava com firmeza e conhecimento de causa.

- Senhora eu não entendo nada de candomblé. E pra falar a verdade, peço desculpas, mas não estou acreditando nessa história. Só quero saber sobre Ritinha. Ela suicidou-se mesmo?

A mulher remexeu em uma bolsa velha debaixo de uns cobertores e retirou um cartão entregando-me.

- Pronto. Este senhor vem sempre aqui fazer pesquisas. Ele trabalha com ela.

- Me diga com certeza. Quando a senhora nasceu isso já havia acontecido?

- Com certeza. De Maceió a Fortaleza todos conhecem as mestras.

De súbito a mulher começou a cantar como uma demente.

                   “Navio apitou

                   Marujada corria

                   Lá no cais do porto

                   Mestra Ritinha sorria.

                   Trace o barralho

                   Jogador.

                   Trace o baralho

                   Meu amor.

                   Trace o baralho

                   Jogador.

                   Que eu vou curar

                   A sua dor.”

Minhas pernas quase não sustentavam o corpo. Cambaleante sai sem despedir-me da mulher. Não era possível que aquilo estivesse acontecendo. Pensava “Esta gente acredita em tudo. Produzem lendas para preencher o vazio de suas vidas.” De novo eu estava em um rodamoinho envolvido com o nome de Ritinha. Quando atingi a esquina a voz melodiosa da mulher ainda cantava.

                   “Trace o baralho

                   Jogador.

                   Que eu vou curar

                   A sua dor.”

Como um louco comecei a perguntar aos antigos donos de estabelecimentos, nas livrarias sobre o culto do camdomblé. Na internet autores ilustres como Roberto Mattos, ele estava em Paris, mas respondeu-me, atenciosamente, inclusive indicando a escritora ....que pesquisou sobre o assunto. Todos eles confirmavam a história da velha senhora. Só restava-me uma solução. Ir falar com Ritinha. Ou com quer que me desse uma explicação pelo menos razoável.

Foi aqui neste vilarejo que disseram que eu a encontraria. Meu coração de homem na boa idade, dispara forte. Descansei um bocado contando-lhes grande parte do que aconteceu. Esqueci de dizer que acredito no milagre da chuva e do vento. Quando ela cai molhando o nosso a Terra e nosso rosto cansado de tantas perguntas sem respostas. Acredito no milagre da flor e ainda acredito nos homens bons. Embora esteja muito desiludido com nossa trajetória.

Cheguei a casa de Aluisio. Moreno forte, cabelos lisos, sua compleição de caboclo bem brasileiro. Um sorriso franco e um gostoso sotaque nordestino. Mandou-me sentar e deu-me água e um café. Nada perguntou sobre minha vida. Falamos da temperatura e do Rio Grande do Norte, “Terra do Sol” O seu olhar, os gestos espontâneos, traduzem uma simplicidade e inocência que me acalmam. De repente pergunta-me:

- O Sr. veio jogar buzios?

- Não, Não. Gostaria de saber quem é a mestra que o sr. trabalha.?

- Ritinha.

Falou com uma tranqüilidade que me causou arrepio.

- Gostaria de falar com ela, se for possível.

Pediu licença, foi banhar-se, depois convidou-me a entrar no salão. Sentei-me e ele entrou em um recinto e fechou-se.

No salão em que eu estava havia um oratório com imagens de caboclos e pretos velhos, velas acesas e copos com águas. Vieram duas senhoras vestidas de branco que entraram onde Aluisio estava. Rezavam e cantavam. Faziam invocações curtas e respostas repetidas. Cada movimento que ouvia, era uma expectativa sem limites. Passou por minha cabeça retirar-me. Senti-me ridículo naquela situação. Quando ouvi lá de dentro uma risada e uma voz cantando uma música que eu já ouvira.

Você dizia que me amava

                                                        Você me abandonou

                                                        O teu amor era um pedaço de papel

                                                        Caiu nägua e se molhou

                                                        Arranje outro amor que o meu

                                                        Já se acabou.

O médium apareceu na soleira da porta, usava umas roupas como as mulheres do cabaré de Luziara e,  terminava a música com um trecho que eu desconhecia.            

                                                        “Hoje eu sou um nova mulher

                                                          Foi o ciúme que me matou

                                                         Arranje outro amor que o meu

                                                         Já se acabou”

- Até que enfim, seu moço, o senhor chegou!

- Você sabia que eu viria?

- Eu não falei pra vocês que um dia iria chegar alguém especial?

Disse olhando para as mulheres de branco e elas balançaram a cabeça confirmando. Abraçou-me e beijando minhas faces, sentou-se, segurou minhas mãos. Eu estava em pânico. Tudo parecia ser a verdadeira Ritinha.

- Seu moço, vamos conversar?

- O que você quer agora?

- Seu moço, quero que escreva a nossa história.

- Precisava tanto amor e sofrimento?

- Ninguém cresce sem amor e sofrimento. Principalmente, um escritor.

- Ritinha foram muitos anos de minha vida, aguardando um chamado, um sinal qualquer para que fossemos felizes.

- Seu moço, o que são alguns anos para toda a eternidade.? Agora, estaremos para sempre juntos eu, João Soares e você. Pois, aqueles que o lerem, conhecerão as Mestras, Luziara, Paulina, Júlia Galega, Aninha, Amélia, Ester e tantas outras que viveram.

- Você não pensou na responsabilidade que tenho de fazer os outros acreditarem em coisas que eu mesmo duvido?

Ela levantou-se, voltou ao recinto onde chegara e disse:

- Seu moço,  quero lhe dar um presente.

Voltou e mandou que eu fechasse meus olhos e estendesse a mão. Quando abri meus olhos era um relógio que marcava três horas. Fiquei com os olhos esbugalhados. Virei o relógio e estava a inscrição “Uma lembrança de Aline”. Minhas mãos trêmulas, frias, devolveram o relógio. Puxei a cabeça de Ritinha, dei um beijo nos seus cabelos e saí atordoado porta afora. O céu estava coberto de estrelas e nenhuma nuvem se movimentava na abóbada do céu.

“Trace o baralho Jogador.”

                                    

                               AS MESTRAS

Mestra Ritinha
Mestra Luziara
Mestra Maria Anália
Mestra Júlia Galega
Mestra Aninha do Agiró 
                        Você dizia que me amava
                         Você me abandonou.
                         O seu amor foi um pedaço de papel
                          Caiu na água e se molhou.
                          Arranje outro amor que o meu se acabou.