segunda-feira, 29 de maio de 2017


O Homem do Computador

 

Everaldo Botelho Bezerra

I

 

 

Estou sendo sacudido pelas mãos e a voz de minha mulher.
- Lázaro... Lázaro está na hora do trabalho.

Sei que este é mais um dia comum. Vou dar aulas para aqueles pirralhos, que não querem aprender nada. Os pais para se livrarem dos filhos, os colocam para aprender computação.

- É necessário, dizem eles, hoje todos têm que aprender a lidar com computador.

Vou rever a cara daquele guri que só sabe contar vantagem sobre a riqueza do pai.

- Papai comprou uma pajero! O Senhor Sabia?

Filho da puta de moleque remelento quer me agredir com sua riqueza! Ou então me liga para cancelar a sua aula.

            Levanto-me para banhar-me. Ao ficar de pé sinto uma grande tontura. Estou suando frio. Sento-me para não cair. Vontade de voltar a deitar-me. A tontura aumenta, dobro o corpo em posição fetal e jogo-me na cama suando muito. A voz de minha mulher volta a soar pela casa.

- Lázaro você vai perder a hora do trabalho!

Há se pudesse ficar um pouco na cama! O corpo exige descansar. Sinto falta de ar. Meu nariz esta fungando. Devo trabalhar... É preciso levantar...

Fico de pé, novamente, e me arrasto até o banheiro. Abro o chuveiro e uma ducha fria cai sobre meu corpo febril. Este dia não será como os demais, arrastado, opressivo. Será pior. Não, não estou sendo pessimista. É a verdade. Com a gripe que estou o peso aumentará. Enxugo-me, apoiando-me com uma das mãos sobre a pia e a outra continuo a passar a toalha nas partes ainda molhadas. Tenho que ser forte. Dizem que os homens nasceram para serem fortes. Visto-me o melhor possível. Tenho que me apresentar bem, frente aos clientes. Do contrario, não confiarão no trabalho. Coloco a calça e meias, sentado na cama. Os sapatos estão me observando. Eles fazem parte do meu corpo. Sabem os caminhos que devo percorrer. Ah, Quantas coisas eles sabem! Antes me apertavam. Hoje, vendo as dificuldades resolveram cooperar comigo. Agora, parecem querer ajudar. Sim eu sei, nós nos conhecemos. Vamos-nos gastando pelas estradas, irmãmente, como a mão direita e a esquerda, ou melhor, como o pé direito e o esquerdo. Calço-os, sabendo-os amigos.

            Sento-me à mesa e começo a tomar o café. Anita, a esposa, diz que preciso alimentar-me, adequadamente. Como se alguma vez eu tivera escolha. Se sempre o que me ofertaram foi o contrário do que desejo. A refeição deveria ter aquilo que esperávamos. Afinal, ela foi posta para mim. Mas, a vontade é do outro. A ordem sempre vem de fora para dentro. Como se fossemos copos vazios que preenchem independente da vontade da vasilha. Nunca por nós mesmos. A vida não nos pertence. Eis aí o problema. A pele, a carne, o sangue, a dor, a dor, é isso mesmo repito, porque ela é grande. Isto nos pertence. A vida não! “É o destino quem nos conduz” Dizem uns. “Temos que seguir à vontade de Deus sem lamentar-se”, dizem outros. Entretanto, a dor é nossa. Como o calo que fez o sapato quando não me conhecia. Este sim é meu: o calo. O telefone toca. O moleque remelento está cancelando a aula. Descobri logo quando vi o seu número no celular.

 – Seu Lázaro não vou á aula hoje, papai quer sair para comprar um bocado de coisas. Sabe aquele Ribonite de setecentos e oitenta reais que está brilhando na vitrine do shopping?

            – Sei.

            Respondo, educadamente, pois esta é a minha função.

- Ele disse que é a primeira coisa que comprará...

- Certo.

Corto logo o assunto antes que desfolhe toda a sua riqueza na minha cara. -Então não teremos aula hoje.

 Afirmo, como se a decisão fosse da minha vontade.

- Telefone depois.

            Desligo o aparelho antes que mande este moleque à puta que o pariu. Será que não sabe que vivo disto? Bolas! Vou fazer outra coisa dentro deste horário. Preciso pensar como vou ganhar o dia. O suor escorre no meu rosto... Setecentos e oitenta reais... Mais de três salários mínimos por um tênis. É um absurdo! Para chutar bola, ir como um pégaso para o colégio, expor aos seus colegas. Mostrá-lo para a namorada. Só para sacanear a moleca. Fazer os meninos e meninas desgastarem seus pais para que comprem o mesmo Ribonite. Formando assim uma cadeia interminável de jovens que não sabe qual o salário mínimo vigente. Minhas pernas estão tremendo. Tenho que fazer algo, o dia não pode passar em branco... Deixe-me pensar... Deixe-me pensar

            Vou à rua Tocantins, há um cliente que está com problemas no seu aparelho..

Na frente da casa escuto o casal discutindo. Fico sem jeito de chamar. Não posso ficar em frente da casa como um observador. Arrisco e toco a campainha, eles não ouvem o primeiro toque. Insisto e um casal de crianças vem correndo a varanda. Olham-me assustados. O menino volta correndo para dentro de casa gritando.

-Papai, tem um moço no portão.

A menina fica observando-me como se eu fosse um animal raro. Um intruso. Ela é bonita, cabelos loiros e cacheados. Olhar verde como as folhas dos coqueiros da Praça Pedro Velho, à noite, iluminados por luz artificial.

            - Mãinha está brigando com papai.

Diz com a doçura da inocência. Antes que respondesse qualquer coisa, o pai dela chega como um tufão à porta.

            - Scarlet para dentro!

Scarlet? Penso. Como gostamos de nomes estrangeiros. Por um instante lembro-me de Scarlet O’hara debaixo de grande árvore copada vendo sua fazenda, ser consumida pelo fogo. E a frase célebre: “Amanhã pensarei nisto”.

Eu não posso pensar amanhã. Tenho mulher e filho para alimentar. Tenho que pensar hoje.

            -Como é rapaz, não vai entrar?

Fala-me em alta voz, ainda embalado pela discussão com a mulher. Assusto-me, procuro o trinco do portão que range ao abrir.

            - Entre.

 Falou mais calmo.

 -Venha ver o computador que comprei. Quero que instale o Windows 98.

            A casa é simples. Na sala tem colado na parede um pôster da dupla sertaneja Leandro e Leonardo. Foto antiga, quando o primeiro ainda estava vivo. O cliente entra no quarto e há uma rede atravessada. Tira o punho do gancho e enrola-a de jeito que fica uma trouxa pendurada. O aparelho está sobre uma mesa de madeira tosca. O homem diz que vai deixar-me a sós para não interromper o trabalho. O computador é do ano de 1990. Levo um susto. Meu Deus, como é antigo. Fico olhando àquele ancião enquanto o ligo. Olho para a tela que, fracamente, vai se acendendo. Lá na cozinha sinto que o casal continua a discutir, agora em tom mais baixo. Enquanto a tela se ilumina de um azul cerúleo, quando o sol está a pino. Começo mentalmente a conversar com ele.

            - Como é amigo, já se casou? Ou usou das suas opções? Os humanos acham que temos que seguir a mesma cartilha. Namorar, casar, procriar, procriar para que nossos filhos viajem para o sul maravilha e se despedacem nos andaimes de algum edifício em Copacabana ou atualmente na Barra. Ralar muito, enquanto eu fico aqui, contando para a vizinhança de boca cheia: “Meu filho trabalha na Barra! Ele fez sucesso no Rio de Janeiro. Os seus colegas o chamam de Paraíba, sabe como é? Para eles somos todos “Paraíbas”. Brincadeirinha, eles são muito humorados. Em São Paulo a coisa fica um pouco mais complicada, há um grupo maluco de cabeça raspada que nos perseguem e matam. Como se fosse uma caçada a inglesa atrás da raposa. Mas conseguimos sobreviver, se não dermos bobeira no metrô, ou fugirmos dos olhares de desprezo dos descendentes de italianos que nos chamam de “brizoc”. Não, não me pergunte que porra é esta! Sei que nos chamam disto e de outras coisas mais. O importante é estar lá. Dizem que se ganha dinheiro. Podemos morar em São Gonçalo ou em Duque de Caxias, o paraíso dos nortistas e nordestinos. Há uma feira que tem de tudo daqui. Da carne de sol aos sanfoneiros. Dos discos de Glorinha Oliveira até o feijão verde. “É massa viu?”

            - Você está cansado, rapaz!

            Assusto-me, pois, não sei se disse isto para ele ou ele disse para mim.

            Chamo o dono do computador e explico:

- Senhor, infelizmente ele não rodará com este programa, está lento demais.

            -Como? Paguei uma nota por este computador!

-Depende que nota o senhor deu. Está completamente defasado.

            A mulher ouviu e continuou a falar alto, agora na minha frente.

            - Não falei? Não falei? Compra um objeto caro deste, deixando de comprar roupas para as crianças. É um absurdo uma coisa desta!

            Fico sem jeito. A mulher não tem nenhuma discrição. Poderia ter-me deixado sair para esta discussão íntima.

            - Você é burra, mulher. Não entende nada de globalização. Tenho que estar conectado com o mundo. Este computador ainda servirá para os meninos quando crescerem.

            - Você tem de estar conectado é com as necessidades de sua família, isto sim. Agora vai pagar um dinheirão para este senhor. E não vai adiantar nada. Se ligue viu? Quando mamãe vir este aparelho vai ficar uma fera. Ainda não pagaste o dinheiro que deves a ela.

            Fico sem jeito desta discussão inócua que nada tem a ver comigo. Despeço-me sem nada cobrar, com a frase soando ao ouvido. “Globalização, globalização” descanso um pouco no banco da praça em frente a igreja São Pedro. Penso em sua trajetória no mundo. Creio que falo em voz alta.

– Pedro, por que não aprendestes a andar sobre as águas? Tinhas as mãos d’Ele para te guiar. Hoje, poderias compartilhar conosco esta fé. “Globalização” o que sobrou disto foi o fim dos postos de trabalho. A cúpula dos países mais ricos diz:

- Nada se pode fazer. Seguirá os programas com o rigor do ajuste fiscal.

 A mediocridade do crescimento dos últimos vinte anos. Preciso fazer minha vida urgente. Daqui a pouco estarei velho para o mercado de trabalho. A vida é pouca para decidirmos o que desejamos de coração. Principalmente, se for no campo da arte, as barreiras encontradas nos primeiros anos, não nos dá chance de sobrevivermos dela. Quando descobrimos ou já não há tempo, ou é reduzido para desenvolvermos por completo nossas reais aptidões.

Sei que passo por pontes que me conduzem a lugar nenhum, vielas escuras que vão dar em nada. Faz sentido somente para atravessá-las, humos que nos fazem escorregar, limbos fedorentos que provocam vômitos. E a luz não chega, enquanto buscamos, sem cessar o verdadeiro caminho. Ah, esta claridade e mormaço nos dão uma preguiça e impede o raciocínio claro. Provoca a seca, que herdamos para todo o sempre, ou desaba um aguaceiro que destrói as plantações e as casas dos desvalidos.

 A esposa em casa não sabe as humilhações, o suor pingando no rosto para descobrir o defeito em cada computador. Não posso falhar em diagnósticos. Há clientes implacáveis que ficam verificando cada passo que dou. Cada movimento que executo em suas máquinas. Na maioria das vezes são desconfiados. Medo que eu troque uma peça que não seja necessária, outros que não roube a original e reponha uma danificada. No final sempre pechincha o preço cobrado “acreditava que fosse uma bobagem, um custo mais accessível”. E lá se vai o meu suor gratuito para manter o cliente. Globalização, globalização e o desemprego se alastrando como uma peste sem controle. O homem sempre será o eterno perdedor para a máquina. Dizem “Temos que pensar positivo”. É frase corrente. A ponto de nos alienar com excesso de idealismo. Oh céus, que sociedade sabidamente injusta!

Desperto dos pensamentos com a preocupação do horário da aula no bairro de Petrópolis. O perfume da fé que não senti em frente à igreja faz-me sentir tolo. Ah, como duvido dos pensamentos sobre o progresso! Procuro a condução que me leve ao destino do bairro. Diante das interrogações crescentes, tenho uma certeza. Preciso estudar para ver se dissipo as dúvidas.

Quando chego ao apartamento da aluna estou com os pensamentos embaralhados. Só o fato da porta do elevador se abrir e deparar-me com grande tapete, vasos de plantas, quadros no hall, dá-me um sentimento de inferioridade que fico inseguro em tocar a campainha do apartamento. Parece que irei pedir um favor. Uma côdea de pão. Quando na verdade vou dar aula. Crio coragem e, timidamente, aperto a campainha. O som blim-blão parece dizer-me “estás incomodando, seu intruso”. Começo a suar novamente. Cada casa é um mundo diferente, cada ser humano é um mistério. Preciso estar atento em que universo vou entrar. A empregada, de uniforme chinfrim vem atender. Abre a porta já fazendo um sinal de silêncio com o dedo indicador na boca. Cochicha:

- Carla, sua aluna está terminando a aula de piano.

A música é conhecida. Grande parte dos telefones emite este som, também os bancos, repartições públicas quando ligamos que solicitam, “um momento, por favor”. Disseram-me que o nome era “Pour Elise” de Beethoven. Fico pensando na inspiração que teve para que sua música agora se banalizasse e até provocasse repúdio sabendo que temos de esperar, até sermos atendidos.

Fiquei observando-a tocar. Seus dedos ágeis deslizavam nas teclas do piano. A expressão compenetrada, olhar distante, fazia-me ter a certeza de que aquele era o seu caminho. Agora mudara de musica, ouvi o seu professor falar em Chopin. Começava em tons lentos e graves em uma seqüência contínua e outro som pianíssimo e belo sobrepondo  como se houvesse dois pianos. Os tons graves anunciando um mar profundo e cheio de mistérios, o outro uma leve brisa superficial enganava os sentidos disfarçando o profundo e bravio mar com espumas tecendo filigranas de sons que acalmavam o espírito. Depois em crescente oposição aos sons graves, os agudos iam aumentando e acelerando como tropas guerreiras invadindo uma cidade de camponeses tranqüilos e desamparados, arrasando tudo que passavam pela sua frente. Em frêmito sem igual. Esse rumor surdo e áspero tomava conta da sala, da aldeia imaginada, das nossas almas e deixava-nos a nus diante do mundo. Nus e belos. Medrosos e ao mesmo tempo fora do espaço físico. Com a certeza alguém com muita técnica e sensibilidade havia desnudado a nossa alma. Lentamente, esse rumor surdo ia acalmando como se as tropas inimigas fossem abandonando a aldeia devastada. É isto! Somos uma aldeia devastada. Pelo estrangeirismo, pela herança dos militares, a falta de uma educação que priorizasse o que desejamos ser com objetividade. O debate político nas centrais sindicais em prol dos nossos direitos. Somos uns borra-botas tentando costurar uma colcha de retalhos que recebemos de donativos estrangeiros. E ainda colocamos etiquetas no tecido esgarçado. Enganando-nos com promessas de falsas, velhos discursos de nacionalismos, planos de estabilização da moeda e conseqüência desumana que promovem ainda mais o distanciamento das classes favorecidas e as miseráveis. E, haja corte nos gastos sociais, saúde, moradia, educação. Sim, é isto. Somos uma aldeia devastada, tentado construir nossa identidade sócio-cultural. Ouçamos Chopin, os seus noturnos, prelúdios, barcarroles e sonatas com as luas cheias, argênteas, produzindo reflexos esparsos no afã de costurar estas lâminas de luzes para sonharmos. Que sem o sonho a vida, definitivamente, não vale a pena.

Os dedos de Carla percorriam ligeiros as teclas negras e brancas do piano e os meus pensamentos tentavam costurar mentalmente o nosso jogo de cartas. Sem reis, rainhas, valetes e damas. Mas, Senadores, deputados corruptos, juízes, governadores e precatórias espalhadas no chão como um baralho que caí de mãos descuidadas de um péssimo jogador chamado Presidente. Carla não era sensual como a minha esposa. Mas, havia um refinamento que me encantava.

Sua aula de piano terminou e fomos direto para o computador. Elogiei sua habilidade nas teclas e o sentimento que impôs nas notas musicais. Falou-me de Chopin. Sua vida atribulada, seu túmulo simples localizado no cemitério de Pére-Lachaise em Paris. Como foi turbulento o seu amor com George Sand.

Ela dizia, “Enquanto ele compunha, ela fazia marionetes, escutando-o com amor. Disse que George Sand foi a criadora deste teatro, entre tantos livros que escreveu. Grande feminista e incompreendida na sua época.” Eu a ouvia encantado com sua cultura sobre as artes. Seu perfil exalava o aroma das perfumadas e brancas açucenas. Ela era um bálsamo para o abismo que eu vivia. Inevitável a comparação de sua vida com a minha. Do seu lirismo com a minha realidade. Dela mesma com a minha esposa. Ajeitava os meus óculos sem ter necessidade, só para ter o que fazer com minhas mãos. Citava autores e frases que lia esporadicamente, para demonstrar uma cultura que não tinha, mas que ansiava ter. Fiquei envergonhado quando falei o nome da obra de Camões os Lusiadas, quando ela sussurrou com carinho sem afetação:

– Já que somos amigos, Lázaro, desculpe dizer: o nome é os Lusíadas. Para que não repitas em público e não sejas criticado.

Fiz que não ouvi e segui ligando o computador iniciando a aula de Internet. Se eu não tivesse a tez morena ela descobriria que estava vermelho de vergonha. No cérebro um branco se instalara. Vergonha, Vergonha, Vergonha de uma jovem saber pronunciar corretamente o título do livro que eu acabara de elogiar. Vergonha, vergonha vergonha.

 - “Um pouco mais de sol e eu fora brasa,

 Um pouco mais de azul e eu fora lei.

 Para atingir faltou-me um golpe d,asa,

 Se ao menos eu permanecesse aquém.

De tudo houve um começo e tudo errou

Ai, a dor de ser quase, dores sem fim,

Eu falhei entre os demais, falhei em mim.

Asa que se lançou, mas não voou”.

 Lembrei-me deste poema de Sá Carneiro e as lentes dos meus óculos se embaçaram, devido ao meu olhar marejando lágrimas. Pedi licença e fui ao banheiro dando desculpas da gripe. Fechei a porta, tirei os óculos e recostado a parede chorei sem parar. Lágrimas salgadas de impotência, de fracasso, de vergonha.

Foi assim que conheci Carla, jovem mulher refinada, talentosa e ampla visão do mundo. O contrário de minha esposa, que se assemelhava à língua portuguesa, “inculta e bela”.

Com Anita, não tivemos um casamento tradicional, festa, vestido de noiva e toda a parafernália que envolve o casamento. Atração física que se confunde com o amor. No decorrer do tempo, fui conhecendo o sabor e o dissabor do casamento. Passei dos grilhões psicológicos de minha mãe, para o da esposa. Sem libertar-me completamente da primeira que vivia me atormentando e resolveu que a “família” deveria, se não morar junto, pelo menos tê-la como vizinha. Sendo assim, os grilhões se fortificaram e o que pensei em liberdade, transformou-se em prisão. Estória corriqueira, não? Mas praticamente, sem solução, principalmente para quem foi domesticado desde a infância. Há dias que me apaixono por olhos belos e tristes, por cabelos longos e soltos, sorriso franco irradiando aquilo que não tenho, alegria e liberdade. Começo a me criticar como se fosse um doente mental, traidor, canalha. Se bem que feliz, ou infelizmente, não leve a extremos esses sentimentos, escapando de olhares, dissimulando que não estou entendendo frases, fugindo de possíveis encontros que poderiam acontecer. Gabriel, meu filho é a minha alegria, a verdadeira. Sei, entretanto, que um dia crescerá e se casará, e ficará comigo o vazio da existência. O arrependimento do que não vivi. A renúncia imposta pela lei e a moral.

Assim, eram minhas aulas com Carla. Ensinava-a lidar com os programas e ela ia com carinho contando-me histórias dos mestres da literatura, música, pintura. Quando nos despedíamos ficava um perfume no ar. Um desejo de quero mais. Pela rua ensolarada os diálogos iam se repetindo em meus pensamentos. Ás vezes me encostava a uma árvore frondosa e anotava os nomes dos escritores famosos e suas principais frases. Pena que era só uma vez por semana. Mas o seu rosto sereno e a música de Chopin ficavam na lembrança como um relicário guardado em um tesouro só meu.

Havia recebido um telefonema de uma senhora chamada Aurora. Dirigi-me para o bairro da Candelária. O sol começava a dar sinais de despedida. Sorte minha que havia feito um lanche no apartamento de Carla. Quando cheguei a casa de dona Aurora ela abriu a porta, cordialmente. Deveria ter seus setenta e cinco ou oitenta anos. Despenteada, a alça do sutiã que seria branca, estava caída e encardida sua expressão de desespero deixou-me atônito. Agarrou meu braço, puxando-me para dentro do quarto onde estava o computador, falava sem parar.

- Meu filho, graças a Deus você chegou. O vagabundo do meu sobrinho a quem eu dei de um tudo, desapareceu uns dois meses. Veja como é a ingratidão. Só aparece quando quer dinheiro para gastar com as vadias. Um vagabundo sem paradeiro. Oh Deus! Como a velhice é triste. Da última vez que o vi ele trouxe para dentro de minha casa uma mulher ordinária. Ela só faltou me matar de tantos maus tratos. Coloquei-os para fora. Ora se coloquei! Ele que vá se virar para sustentá-la. Com meu dinheiro não! Com meu dinheiro não!

- Senhora qual o problema no computador?

- Veja, ela estava me dando até remédios para dormir. Eu não saia da cama, bêbada. Quando conseguia me levantar era me escorando nas paredes. Um dia quase caí se não estivesse me agarrado naquele sofá. Eu não tinha que botar esta mulher para fora, me diga, hein? Seja justo, não tinha?

-Senhora vou ligar o computador, para descobrir o que está acontecendo.

- Mas eu estou lhe dizendo! Aqui está tudo travado. Deve ter sido aquela ordinária.

Enquanto verificava o defeito, ela continuava a falar. Constatei que o problema era a placa mãe. Informei-a que precisava levar o aparelho para a oficina.

- De jeito nenhum! O senhor não vai tirar nada daqui de dentro de casa. Vou telefonar agora para o Cícero.

Senti a sensação que a estava assaltando.

- Cícero, você precisa vir aqui agora!

Falou com um timbre de voz suave, como se falasse com alguém que amasse muito. Do outro lado da linha, a recíproca não era verdadeira, ela insistia.

- Cícero tem um homem aqui em casa que quer levar o computador!

. Ela desligou o telefone e disse:

- Já resolveremos isto.

Notei que suas unhas e as pontas dos dedos estavam coloridas de um verde claro, como se estivesse trabalhando com alguma massa.

- Senhora esta pessoa vai demorar muito?

- Não se preocupe. Ele é rápido. Bem que ele me avisou que não queria ninguém aqui.

- Senhora estou atendendo sua chamada para consertar o seu aparelho!

- Não, não estou falando do senhor. É do vagabundo do meu sobrinho e sua mulher que danificou o computador. O Cícero estava certo! O Cícero estava certo!

- Quer um copo de água?

Realmente estava com sede. Entretanto a presença dela causava-me uma náusea que pensei duas vezes antes de aceitar.

- Sim, por favor.

Quando ela virou as costas notei o vestido surrado. Uma ponta maior que a outra, descalça como se estivesse em completo abandono. Aliás, tudo ali recendia o aroma de abandono. De coisa envelhecida e maltratada. Um sofá grande, vermelho escuro desbotado, outro para uma só pessoa com um pequeno banco para colocar os pés. Ambos surrados, engordurados pelo suor do corpo e excesso de uso. Não havia empregada para cuidá-la, senti pena neste ambiente cheirando a mofo. Ela retornou com a água entregou-me o copo com a mão encarquilhada e trêmula.

- Cícero não deveria demorar tanto. Vá que o senhor fosse um bandido, já teria me matado e desaparecido.

- A senhora acha que um bandido teria o trabalho de aprender uma profissão, estar até esta hora sem almoço, esperando não sei quem para determinar o que devo fazer?

Disse com voz baixa, mas sentido uma profunda irritação.

- Oh, desculpe, devo tê-lo ofendido, não se aborreça o Cícero já está chegando.

Vontade de largar tudo e desaparecer rua afora.

Um barulho na porta e ela mudou a expressão do rosto. Um sorriso amarelado de uma dentadura gasta.

-Oh Cícero, como está você meu filho?

Era um jovem alto, claro, sem camisa, uma bermuda estampada com o corpo de quem cultua o físico, uma tarja preta na testa segurando os cabelos que não eram longos, mas encaracolados. Um capacete de moto na mão que o atirou sobre o sofá.

- Já não disse para não ficar me ligando toda hora, hein? Você não me deixa sossegado. O que é desta vez?

- Meu filho, é o computador que precisa ser consertado.

- E eu com isso? Por acaso sei consertar esta merda? Não está aí o técnico?

Tomei a palavra para por de vez a termo aquela discussão.

- Veja bem, o aparelho está com a placa mãe danificada. Gostaria de levá-lo para consertar na minha oficina. Mas, dona Aurora quer que o trabalho seja feito aqui.

- Como devemos fazer então? – Falei.

- Combinaremos amanhã em frente ao Shopping para comprarmos a peça.

Marcamos o horário e saí apressadamente.

O Cícero seguiu-me, mesmo com a solicitação de dona Aurora dizendo:

- Fique um pouco mais, meu filho.

A pé, segui para a parada de ônibus, enquanto o ronco de sua moto novinha passava em alta velocidade.

No ônibus tentava dissolver o mau humor que esta cena me provocara. Pensava na Carla com sua música, em Camões e no Sá Carneiro. “Para atingir faltou-me um golpe d’asa, se ao menos eu permanecesse aquém”.

No dia seguinte, às nove horas no lugar combinado, Cícero chegou em alta velocidade, parou a moto rente ao meu corpo que me assustei. Trazia uma moça na garupa, ela devia ter dezesseis anos, cabelos louros, seios fartos, olhar brilhante.

- E aí camarada? Você me aguarda um instante enquanto levo a gata até a praia?

- Tudo bem.

Respondi com esta calma que tenho e que me deixa em desconforto quando eu deveria dizer não. Como chegou, partiu fazendo o motor roncar em demasia. A menina tinha pernas torneadas, cintura trabalhada, belos quadris, dentro do padrão de beleza das novelas de TV. Seus cabelos esvoaçantes quebravam a monotonia das mulheres e homens na parada de ônibus com suas roupas comuns, pobres, e rostos de sofrimentos queimados pelo escaldante sol. Fiquei observando o burburinho daquelas criaturas no afã de ganhar o pão de cada dia, como eu mesmo. Os micro ônibus paravam e abriam suas portas com violência. Vozes roucas dos gritos cortavam o ar.

- Parnamirim! Parnamirim!

Gente invadia tentando um melhor lugar dentro do transporte.

- Cidade Satélite!Cidade Satélite! E tudo se repetia.

Na verdade Cícero não demorou. Mandou que eu subisse na garupa da moto. Acomodei-me sem jeito e não sabia onde me segurar.

- Se segura em mim, cara. Eu não mordo, fica tranqüilo!

De calças e sapatos sem saber onde colocá-los, fui procurando os pedais. Ele disparou em alta velocidade no meio dos veículos. Meus óculos colaram nos olhos, o vento quente e forte parecia que iria me sufocar. Uma sensação de estar voando sem ter asas para planar. Um sorriso aflorou nos meus lábios que se entreabriram e o vento invadiu minha boca fazendo um roncar estranho nos dentes, circulando o céu da boca, ressecando-a. Fechei-a e sonhei por instante uma vida que não me pertencia, mas do garotão livre e belo que me rebocava.

Não, sei que não sou feio. Sou acanhado. Deste acanhamento ridículo de ser pobre, vindo do interior, sufocado pelas vontades reprimidas, grilhões autoritários dos meus pais, condicionando-me a padrões, uma educação exacerbada. Nunca fui de falar gíria que a garotada falava com naturalidade, deixando explodir o vulcão próprio da infância e juventude. Ele ficou abafado a queimar-me as entranhas, provocando revolta, consumindo-me em tristezas, às vezes sem grandes motivos. Mas o vulcão existe, sempre a devorar-me como animal feroz sem alimento, amedrontado de procurar a caça. Lembro-me um dia que entrei correndo dentro de casa e não percebi que havia visitas. Na minha corrida meu pai deu-me uma tapa tão grande que caí sentado no meio das visitas. Atordoado, não sabia o que se passava.

- Tenha educação! Não se deve passar no meio de pessoas quando se estiver conversando. Peça desculpas e se retire!

Envergonhado, sentindo dores no peito e na bunda, desculpei-me e fui chorar de raiva e vergonha. Grande parte dos pais acham que isso é dar educação. O vestuário escolhido por eles sem perguntar se gostávamos, os alimentos, os amigos, as namoradas.

Por isto sou assim, jovem, cabelo cortado baixo, tipo recruta, roupas muito sérias, e um desconforto de movimentar-me livremente, expressar idéias. Repito sempre: “é possível”, “talvez” “pode ser”, “eu acho” já soa abusado. Só expresso se for frase corriqueira que tenha a certeza todos concordarão.

Cícero entrava nas lojas de computadores e pedia a placa mãe com a maior tranqüilidade. De bermudão florido, sem camisa, com o timbre de voz livre. Sem sentir-se ameaçado.

Encontramos a peça e coloquei-a na minha pasta. Tirei os óculos, para sentir o vento bater de chofre em todo rosto, montei na garupa e senti de novo o sabor da liberdade, ah, vontade de eu não ser eu nunca mais! O vento quente esfriava o vulcão que havia no peito, fazia escorrer lágrimas pelos cantos dos olhos, lágrimas provocadas pelo próprio vento, pela felicidade momentânea de ser outrem, pelo encanto da velocidade.

Deixou-me quase em frente da casa de dona Aurora.

- Você não vai entrar? Perguntei.

- Não, ela vai querer prender-me o tempo todo, e não estou afim. Quando terminar o serviço, te procuro para pagar o concerto.

Dona Aurora abriu a porta perguntando:

- Cadê o Cícero?

- Não sei senhora. Ele comprou a placa e se foi.

- Ah meu Deus, ele tinha que acompanhar este serviço!

Calei-me e comecei a fazer o trabalho. Ainda não estava curado da gripe. O desconforto das calças compridas, do sapato, do calor deixava-me irritado, entretanto, cada vez que ela perguntava:

- Quer água?

- Sim senhora.

- Quer café?

- Não senhora.

E o trabalho se prolongou até tarde. Ela ligou para o Cícero diversas vezes. Ligações rápidas, que tenho certeza ele cortava o assunto.

Quem era Cícero? Neto? Um sobrinho confiável? Durante o trabalho, pensava. Por quê não havia uma empregada para cuidar daquela anciã? Se ela passasse mal quem a socorreria? Sua casa era grande e completamente descuidada. Houve um momento que estava em completo silêncio, ela deixara de falar e ouvi um leve raspar de coisas. Fui ao banheiro que havia no corredor e quando coloquei a cabeça para observar o barulho, ela raspava a tinta da parede da sala com a ponta de uma faca e com as próprias unhas, distraída, fazia caretas, murmurava consigo palavras desconexas. Voltei ao computador intrigado e com pena, sem entender o que se passava.

Terminei o serviço e chamei-a. Ela estava com o mesmo vestido do dia anterior. Havia um cheiro desagradável. Coloquei-a sentada e liguei o aparelho. Para minha surpresa ela não queria nenhum programa no computador, apenas o jogo de paciência. Perguntei se queria colocar novos programas.

- Não senhor. Comprei este aparelho para jogar paciência. É tudo o que sei fazer.

Neste momento a campainha tocou. Ela atendeu a porta. E a pessoa dirigiu-se logo para junto de mim. Ela deixou-o e correu para o telefone.

- Cícero, venha para cá, o vagabundo chegou. Houve uma discussão. Ela insistia. Tens que pagar o conserto do aparelho. Ele disse algo e desligou. Ela voltou e apresentou-me.

- Senhor este é Leandro, meu sobrinho. Amanhã pagarei o conserto. Pode confiar.

Voltando-se para o Leandro disse.

- Quer dizer que resolveu me visitar?

- Já estou de saída. Só vim saber de sua saúde.

- Ela está muito boa, obrigado, falou em tom sarcástico.

Despedi-me e Leandro deu um beijo na sua testa dizendo:

- Vovó estou indo, também. Ligo para a senhora depois.

A noite caíra breve e eu não me dei conta que havia trabalhado o dia todo. Leandro caminhava comigo até a parada do ônibus.

Leandro era de boa estatura, um metro e setenta, cabelos longos, ressecados, usava um tipo “rabo de cavalo”, magro, vestia-se mal, calças rotas, falava calmo, logo notei que era religioso. Citava parábolas da Bíblia. Caridade, fraternidade, reencarnação, era o linguajar corriqueiro. Conversamos sobre a violência, ele era carioca e estava em Natal desde criança.

- O que você acha da violência?

- A banalização da violência através dos filmes estrangeiros explosivos, da nossa Tv., a quebra do condicionamento da igreja, a situação social do país, a facilidade de se comprar uma arma, tudo isto facilitou para esse estado de violência.

Ele ficou muito intrigado quando falei da quebra do condicionamento da igreja.

- Já sei, você, também não é católico?

- Por que “você também?” Perguntei.

- Sou Kardecista há muito tempo. Você quer dizer que o homem já não respeita Deus, porque se livrou da igreja?

- Deus não tem nada a ver com a igreja. Ou melhor, com religião nenhuma. Se assim fosse todos os religiosos seriam bons.

 Sei que soltei esta frase de chofre pensando na oportunidade de tocar na situação de sua avó. Aquilo estava confuso para mim.

- Cara que frase legal! Deus não tem nada a ver com as religiões!

- Claro, Ele está mais para a mente humana do que para o altar. Sentenciei.

- Você e bárbaro! É dos meus. Adoro este papo diferente.

- Leandro não estou dizendo nada de extraordinário. É lógico, pense um pouco, se você se faz de bom com medo do “pecado” estás fazendo uma barganha com Deus para obter os céus.

- Meu Deus é verdade! Como a grande maioria não se toca nisto?

- Leandro o que dona Aurora é para você, tia ou avó?

Ele deu uma risada e disse:

- Nem uma coisa nem outra. Ela era amiga do meu pai que abandonou minha mãe e veio morar com uma mulher daqui. Agora, dizem que foi para Fortaleza com ela. Foi assim que a conheci. Chamo-a de vó, e tenho todo carinho com ela. Ela me chama de sobrinho. Antes de esse cara aparecer vivíamos bem. Agora a situação ficou muito estranha.

- Que cara? Fingi desconhecer o assunto.

- O tal de Cícero, cretino. Dá uma de bonzinho para pegar o dinheiro da vovó.

- É mesmo?

Ela é apaixonada por ele. Ele diz que a ama e namoram sentados no sofá.

Fiquei pasmo. Nunca tinha visto algo igual.

- Aquele rapaz bonitão, cara? O que é isto?

 Fui entrando no seu linguajar.

- É safado. Enrola a vovó direitinho. Já descobri que é casado e mora lá em Igapó.

- Como foi que se conheceram?

- Ela precisava pintar a casa e ele apareceu, alguém indicou. Sei lá como foi que esta peste apareceu. Ela se apegou a ele de tal forma doentia, que fica arrancando a tinta da parede com as próprias unhas para que ele venha pintar de novo e fique mais tempo junto dela.

- Leandro, ela está doente.

 Não comentei que havia visto a cena.

- Ele é quem consegue tirá-la de dentro de casa para ir ao médico. Ele fez a cabeça dela direitinho. Comprou uma moto para ele zero quilometro e ele desfila com mulheres bonitas pela cidade.

- Que sordidez, você tem de fazer algo! Conversar com um psiquiatra, ir à polícia, dar uma surra nele, qualquer coisa para salvar a sua avó.

- Tenho ódio dele, cara. Uma vez por semana, vai para a casa dela a noite, fica sentado no sofá, abraçado com ela. É safado! Como nunca vi ninguém na vida. Vovó fica toda derretida quando ele está com ela.

- Espera aí! Ele fica? Este termo, ultimamente, quer dizer transar. Eles têm sexo?

- Não sei, da maneira comum, acho que não. De outro modo não sei.

- Rapaz ela e uma senhora que não inspira nenhuma sensualidade.

Não quis dizer repulsa, para não ofender o pseudoneto.

-  Que idade ela tem?

- Oitenta e dois anos. Você precisava ver, o meu quartinho era lá nos fundos. Comprava comida a quilo e dividíamos, com o máximo carinho. Cuidava da casa, com o passar dos anos, arranjei uma namorada e a levei para nos ajudar. Antes de avó conhecer esse cara ia tudo bem, minha namorada dava banho nela todos os dias, lavava a nossa roupa, era uma maravilha. Há se era! Depois ele fez sua cabeça e fomos postos para fora, porque estávamos atrapalhando os seus planos. Ela comprou um telefone celular para ele que a domina como se estivesse em uma coleira. Desgraçado! Desgraçado! Acabou com o sossego da vovó. Agora toma conta de tudo. Da sua vida, casa e dinheiro. Diz que ele é um santo.

- Leandro tenho que ir. Este é o meu cartão. Se alguém precisar de algum serviço de computador, me indique, pois a situação não está boa.

- Foi um prazer, cara. Seu nome é?

- Lázaro, desculpe não poder ajudar em nada.

Fui para casa e o pensamento não parava. Que duas estórias completamente diferentes sobre uma só situação. Qual delas seria a verdadeira? Que coisa absurda um jovem aproveitar-se assim de uma velhinha. Quantas armadilhas à solidão nos leva. É preciso cuidado com as artimanhas da mente. O ser humano que não aprendeu a lidar com o pensamento é um eterno escravo de situações esdrúxulas. Somos acorrentados por vícios, seitas, jogos, fugas psicológicas e toda sorte de engodos que possam nos trazer algum conforto momentâneo. Não saía da minha cabeça a velhinha raspando a tinta da parede com as unhas para ter de volta a pessoa que confiava. Isto é a mente humana. Temos que conhecê-la e compreender os seus meandros, saber para onde ela nos leva e a que propósito. Somos cavaleiros montados em cavalos às vezes domesticados às vezes selvagens. Nas duas formas a observação deve ser constante, para saber das suas pretensões. Por isto não acredito em livros de auto-ajuda, não somos massa uniforme, cada ser tem suas próprias complexidades. Não há receita única para todos. Cada um tem que criar o seu próprio caminho. Conduzir o animal que estamos montados, fazendo-o retornar calmo para a residência do seu dono.

A lembrança de Carla não saía de minha cabeça. Era o que me sustentava. Podia ouvir o piano tocando dentro da noite. Noite de lua cheia. Iluminando os nossos fantasmas, destacando os beirais dos telhados, as mangueiras repletas de frutos prestes a amadurecer.

Como a velha raspando as tintas das paredes para obter o seu amor, eu raspava as lembranças da memória para consolar as minhas dores. Como Chopin no porão do navio, adoentado, sonhando em compor sua música. Somos o Noturno, belo e breve. Às vezes grave, às vezes pianíssimo, mas sempre um “Noturno”, com o luar ou a escuridão. Qual o momento que um compositor diz: “A música está pronta?” E um pintor, “o quadro está terminado?” Após a exaustão do resultado obtido com o trabalho, chega o momento final que não se pode acrescentar ou subtrair qualquer nota, o pintor não pode distribuir outra cor ou aumentar um traço sequer. Assim é a vida, o trabalho constante, a obstinação do que se quer até o último sopro de vida. Estamos sempre criando ícones para amar. Como um remédio que adormece a nossa dor. Algo que acreditamos superior a nós para fugirmos da mediocridade, temos uma necessidade imperiosa de ter algo para respeitar e adorar.

Não posso mentir para vocês, principalmente para mim. Casei-me com Anita para fugir dos fortes laços dominadores da minha família. Ela nasceu em Macau. Fui passar um tempo na casa de um dos primos quando a conheci. Éramos crianças. Nossas mães fizeram logo amizade e começaram a tecer planos para o nosso futuro. Brincávamos inocentes, enquanto o nosso destino era traçado. Anita sempre foi bonita. De pele morena e cabelos negros. Encantou-se com o futuro programado, de vez em quando íamos brincar nas salinas. Onde pirâmides de sal, com o reflexo do sol feriam a nossa vista. Não havia verde nenhum, para quebrar aquela claridade. Parecia que estávamos em alguma parte fora do mundo. O sal cristalizava-se e nem a chuva o derretia. O ar era pesado, na luz intensa a beleza da pele morena de Anita descansava o meu olhar. Minha mãe contava-me histórias das barcaças a velas que traziam de longe a água para beber. Ficou na minha lembrança como se fossem argonautas descobrindo novas terras. Hoje, isto é feito com barcos a motor. Não! Não sou um ludista, muito menos contra a tecnologia e ao progresso. Minha mãe contou-me: Um dia peguei uma diarréia que quase morri. Não havia médico que me curasse. Cada dia desidratava-me mais, achei que era o meu fim e retornei com dificuldades para Natal. Foi quando me recuperei da doença só com a mudança da qualidade da água.

Eu ria pensando como é que alguém morre de dor de barriga. Anita embalava-se na rede dando risadas e repetia “Tia teve caganeira, tia teve caganeira”. No principio sua mãe brigava

- O que é isto Anita? Respeite sua tia.

 No fim todos riam. Fomos ao cemitério pagar uma promessa que ela havia feito. Que aridez havia naquele lugar. Nenhum túmulo enfeitado. Esparsas flores de plástico. O calor e o sol não deixavam nada florescer. Voltei impressionado com as cruzes enterradas nas areias e um calafrio passou pelo meu corpo. Minha mãe quase se enterrou aqui. Uma insegurança de tê-la perdido me fez estremecer.

- Tia teve caganeira.

- Você me respeite. Dizia mamãe, ainda serás minha nora.

- O que é nora, tia?

- Mulher do meu filho. Vocês ainda irão se casar!

Por que tive de casar-me cedo? - Pensava- Ou melhor, por que um homem casa cedo? Ele pode libertar-se do julgo familiar sem precisar se prender noutra corrente. A falta de sexo, a instabilidade de sentir-se só, o desejo de ter outra mãe, acreditar que sendo ele, o marido vai comandar a situação, o fazer diário que acreditávamos ser só das mulheres, um filho. Como veneramos um casal que tem uma criança. Impomos que esse é o destino do homem e da mulher. Todos em volta elogiando a criança e dando parabéns aos pais. Como o nosso ego se infla e a vaidade sobe a cabeça, como se fora uma tarefa executada, dizemos para nos mesmos: “cumprimos a nossa missão”. É mentira. A vida não é simples assim. É muito mais complexa. Quantos casais conhecemos que se casaram não procriaram. Quantos homens estão sozinhos por ter-se tornado viúvo ou porque a fórmula exigida deu errada. Dona Aurora está só, raspando as unhas na parede para fugir da solidão. E a música de Chopin como bálsamo derrama-se toda no meu cérebro, acalmando-me, fortificando-me para entrar em minha casa, dou uma última olhada na lua e o meu corpo está cheio de sonoridade e luz.

Ao chegar senti que a insatisfação pairava no ambiente. Minha mãe questionava a hora, considerada tardia, Anita fazia o alimento de Gabriel, silenciosa como se fosse vítima de um tirano. Calada era pior, a conspiração com minha mãe tornava-se mais forte.

- Como você deixa sua esposa até as nove horas da noite sem um telefonema?

- Não vai me dizer que eu estava em farras, a senhora sabe muito bem que nunca fui disso.

- Mas essa hora, meu filho. Anita e eu estávamos preocupadas.

- Não vejo motivo. O meu trabalho não tem hora para começar nem para terminar.

- Você precisa fazer um horário, avisar para os clientes que tens família!

- Acho que a senhora não tem que se meter nisto. Afinal, se alguém tem que reclamar é Anita.

- Coitada, fica em silencio, mas eu sei a dor que ela sente. Ver a noite chegar e o marido não estar em casa.

Olhei para Anita e sabia que aquela intromissão havia sido previamente combinada.

- Vai jantar agora, Lázaro? Disse lacônica.

- Não, Anita! Já senti o ambiente e daqui para adiante a estória pode piorar.

Fui banhar-me. Depois liguei o computador a procura da página dos escritores.

Não tenho dinheiro para comprar livros. Fico buscando aqueles que são oferecidos gratuitamente na Internet. Copio para o Word e desligo rápido a Internet, para não gastar impulsos do telefone. Fico lendo na tela do computador o que por direito deveria estar em mãos – o livro. A partir daí, fica a implicância.

- Você está lendo demais! Isto vai prejudicar sua vista. Quem lê muito pode ficar louco. Chega em casa nem dá atenção à família.

Não consigo ler. O meu computador é um lap-top velhinho, mais é tudo o que posso ter, me satisfaço com ele, é o grande amigo. Às vezes faço que não escuto as reclamações às vezes o desligo e vou deitar-me. Desta vez fiquei pensando em como Anita mudara. Quando nos casamos em Macau ela era uma menina dócil. O seu maior sonho era o casamento, depois vir morar em Natal. Ela era simples e feliz. Isto ajudou bastante na minha decisão. Hoje não se lembra da época de dificuldades nem dos sonhos que teceu. Ficar comigo, casar-se e estar em Natal. Trouxe a irmã consigo que começa a opinar em nosso relacionamento, e minha mãe veio morar ao meu lado. Tudo perfeito. Agora as três se envolvem querendo dirigir minha vida, perscrutando-a como se eu fizesse algo errado. Isto está me tornando uma pessoa infeliz. Os ciúmes, os reclames, a falta de dinheiro para pagar os aluguéis, a despesa com a alimentação, e as máscaras de Anita, Ora de cinismo ora de deboche, já não é a menina simples e sonhadora que conheci.

A luz azulada do computador clareia a escuridão do quarto. De repente, lembro-me de Carla falando sobre Guimarães Rosa. “Você precisa ler Grande Sertão: Veredas”. Baixei a cabeça, deitei-a sobre os braços, descorçoado. Fiquei a pensar. Como gostaria de encontrar pelo menos parte do livro na Internet. Tenho receio de ficar muito tempo procurando. A luz da tela se apaga, fico um bom tempo no escuro com o pensamento a vagar. Anita onde está o carinho, o companheirismo, o amor que tanto falavas? Agora, o salobro toma conta de nossas vidas, e o relacionamento ficou insuportável, demasiado salgado.

            Crio coragem e conecto-me a Internet. Quero ver algo de Guimarães rosa. Procuro-o, e por sorte, lá está um trecho do livro. Já estão batendo à porta.

            - Como é, Lázaro? Quero usar o telefone!

            Salvo o texto e pronto, desligo a Internet para acabar a reclamação.

 

 

- “Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja. O senhor ri certas risadas... Olhe: quando é tiro de verdade, primeiro a cachorrada pega a latir, instantaneamente - depois, então, se vai ver se deu mortos. O senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem que não seja: que situado sertão é por os campos-gerais a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo, terras altas, demais do Urucaia. Toleima. Para os de Corinto e do Curvelo, então, o aqui não é dito sertão? Ah, que tem maior! Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador; e onde um criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade. O Urucuia vem dos montões oestes. O gerais corre em volta. Esses gerais são sem tamanho. Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães... O sertão está em toda parte.”

 

 

Leio o texto como quem está em um deserto. Bebo-o de uma só golada. O coração bate forte. Belo, belo, belo, estou lendo o maior escritor brasileiro. As batidas do coração começam a tomar o ritmo normal. Reinicio a leitura. Nonada? O que significa isto? Acendo a luz e procuro o Minidicionário Escolar da Língua Portuguesa. Encontro: no.na.to. – non.gen.té.si.mo – no.no. – no.ra.- nor.des.te.

Definitivamente, não há a palavra “nonada”.  Fico embevecido com a última frase: “O sertão está em toda parte”.

Na próxima vez que estiver com Carla vou citar este trecho.

Beijei o meu filho e dei boa noite a família que me responderam, mecanicamente, estavam vendo novela. Adormeci repetindo: “O sertão está em toda parte” “O sertão está em toda parte”.

 

No dia seguinte, saí para ver uma aluna, Maria Rosa, era a única aula agendada. Entretanto logo na esquina o celular tocou. Era Cícero.

- Quero encontrar contigo para te pagar.

- Beleza, falei tentando imitar a sua linguagem.

- Onde você está agora?

Disse a localidade e não demorou quinze minutos lá estava eu montado na moto que me fascinara. Em pouco tempo estávamos na casa de dona Aurora.

Ela ficou feliz ao ver-nos. Ou melhor, ao vê-lo.

- Cícero, que bom você aqui, meu filho!

 - Lázaro quis mostrar-me como ficou o conserto do computador. Eu disse que não precisava, mas ele insistiu.

            - Lázaro é um rapaz honesto.

 Disse dona Aurora.

            Liguei o computador e lá estava o jogo de paciência. Cícero foi ao armário e vi um bolo de talões de cheques. Perguntou-me quanto era, preencheu o cheque e mandou dona Aurora assinar. Depois me disse:

-Aurora quer que você dê umas aulas de computador para ela.

            - Tudo bem!

Respondi.

            - Vai para onde, agora?

            Ele perguntou.

            - Candelária.

            - Vou para lá, também.

            - Já vai, meu filho? Não quer ficar um pouco comigo?

            - Hoje não posso.

Respondeu quase ríspido.

            Lembrei-me de Leandro. Fiquei pensando até que ponto vai o mau caráter de um homem. Senti um pouco de nojo do Cícero. Embora ele tivesse sido correto comigo.

            Em poucos minutos estávamos na Rua das Brancas Dunas, ao lado do shopping. Desci da moto e nos despedimos. Entrei no shopping e comecei a olhar as vitrines. Na verdade não conseguia fixar o pensamento em nada. Camisas que custavam quase um salário mínimo, calças que ultrapassavam. Há uma seção de computadores que são alugados. Fiquei observando na parte de cima. Qual interesse que está máquina fantástica provoca nas pessoas. A maioria eram jovens, jogando jogos eletrônicos. Faziam caretas, mordiam os lábios, reviravam seus corpos com o mouse na mão. Porradas, facadas, tiros com todas as armas modernas, explosões... explosões. Outros, em salas de bate-papos, claro que já sabia que estas salas são para namorar, marcar encontros, e até para transas virtuais, entrar em revistas pornôs, jogar xadrez, paciência, enviar e receber piadas com imagens de grandes qualidades técnicas onde a violência e o sexo predominam. Saí desolado e fui ao apartamento de Maria Rosa.

Para que você entenda quem é esta pessoa fantástica, vou lhe contar uma pequena estória:

Maria Rosa era uma mulher de boa índole, beirando os trinta anos, e gostava de falar de espiritualidade e coisas místicas. Não era bonita, mas tinha grandes atrativos. Sua inteligência aguçada e seu bom coração levavam-na sempre a ajudar alguém, fosse aconselhando,ou na parte financeira. Vivia com um coronel, ou sei lá qual a patente no Exército. Rodrigues era seu nome. Ela sabia que era casado e que não vivia bem com a mulher; mas não queria deixar a família por causa dos filhos. Esta será sempre a eterna conversa.                        

 Maria Rosa tinha um emprego relativamente bom. Seu apartamento na Candelária bem montado. Tinha uma vida feliz.                                                                             

Todo fim-de-semana, Rodrigues passeava com ela. Iam à praia, shows, exposições. Ela gostava de ler e procurar diálogos filosóficos com os amigos.  Certa vez, confessou-me que iría ajudar uma sobrinha pobre de Caicó. Já lhe mandara a passagem para vir morar em sua companhia. “Coloco-a num bom colégio, arranjo-lhe um emprego e, depois, ela seguirá a sua própria vida”. E assim fez.

            Marlene chegou. Morena bonita, boa estatura e 17 anos.

            Mas havia algo de estranho nela que eu não gostava. Tinha um jeito muito comum, ou sei lá o quê, denunciando um caráter duvidoso. Tentei esconder essa impressão. Concluí que minha preocupação era fruto do zelo e do carinho que eu dedicava a Maria Rosa. Talvez, a cercasse de muitos cuidados. Portanto, deixei passar este sentimento negativo que me sobressaltou por Marlene.

            O Colégio realmente foi dos melhores que ela arranjou para a sobrinha.  O emprego não saía, porque Marlene não se interessava, dizendo: “que não era o que ela pretendia”.

             Chegamos a sair algumas vezes como amigo, mas, quanto mais conversávamos, mais aumentava aquela sensação de não estar lidando com o tipo de pessoa com a qual gosto de conviver. Chegávamos alegres, ao apartamento de Maria Rosa e todos ficavam muito felizes.

            Deixei de freqüentar aquele apartamento por um bom tempo. 

Certa vez, Maria Rosa mandou um recado para que eu aparecesse por lá. Reclamou muito da sobrinha: disse que era uma pessoa pouco higiênica, não parava em trabalho algum e mostrava-se autoritária em tudo que fazia.

Foi essa a primeira vez que emiti minha opinião sobre o caráter da moça. Expliquei que sentira isso desde o princípio e o porquê da possível amizade não ter acontecido.

Passei outra temporada sem aparecer.

Certa noite, vi a Marlene rodeada de vários amigos, na hora em que tinha de estar no colégio.

Voltei um dia, especialmente, para conversar com ela e me inteirar de toda a situação.

            Fiquei pasmo quando Marlene começou a se referir à tia com sarcasmo. Dizia que Maria Rosa estava ficando velha, exigente, e queria mandar demais na sua vida. Desapareci de novo.

            Era uma noite de julho; de um céu limpo e de uma lua redonda.    

Quando cheguei ao apartamento, Marlene estava sozinha. Recebeu-me com  observações horríveis sobre a tia. Em meio ao diálogo ela me disse:

- Tia Rosa outro dia chamou-me à janela e falou: Veja Marlene que balão bonito está subindo! Esta época do ano é muito especial, devido a beleza do céu e aos festejos populares”. Marlene contava-me essas passagens e, de vez em quando, franzia o canto da boca. E continuou: “Tive vontade de pegar minha tia pelas pernas e atirá-la janela afora”. Quando ela falou isso, senti um calafrio e o pânico tomou conta de mim. “O que é isso menina? Que monstruosidade! Maria Rosa te traz de Caicó, te dá carinho, escola, trabalho, e você querendo matá-la?” Nem sei mais o quanto falei. Sei apenas, que nada ficou naquela mente doentia.     No dia seguinte, procurei, estar só com Maria Rosa e relatar-lhe o enorme perigo que ela estava correndo.

            Ela, debulhada em lágrimas, contou-me o seu drama: “Peguei-a em flagrante, na cama, fazendo sexo com o Rodrigues. Marlene o seduziu completamente. Estou empenhando uma jóia e catando todo o dinheiro que tenho para abortar o filho deles. Tudo isso foi uma tragédia na minha vida”.

            Quando vi Maria Rosa, novamente, ela já havia mandado a menina de volta  à Caicó. Isso pensava ela. Pois, eu tivera informações de que Marlene estava morando, com um homem, embora não soubesse de sua nova residência.

            Passaram-se uns tempos, fui visitar Maria Rosa no hospital. Ela conseguira se salvar de uma trombose, mas ficara paralítica para sempre. E, chorando convulsivamente, dizia: “Quase todo dia, batia um casal na minha porta perguntando se estava ok. Eu, sem  nada entender, indagava: como assim? Eles murmuravam:

  - Vai poder alugar por umas horas o apartamento? Isso acontecia todo dia, com gente diferente. Foi horrível saber que ela fizera do meu lar um motel.

 Maria Rosa perdeu toda a alegria de viver. Não é, nem de longe, a sombra da mulher espontânea do passado. Hoje, sobre uma cadeira de rodas, lê romances clássicos e estuda o caráter e a personalidade humana.

Certa vez fui visitá-la, ela ficou contente.

-Olá, desaparecido, por onde anda? Nunca mais veio ver sua amiga!

- Ô Maria! É a vida atribulada. Sempre correndo atrás do dinheiro.

- Não se desgaste meu amigo, não vale a pena. Venha vou te mostrar algo.

Com dificuldades, movimentava-se na cadeira de rodas até chegar ao computador que ficava ao lado da cama. Com os dedos das mãos contorcidos ligou o aparelho. Eu estava com óculos que havia comprado com um protetor solar. Por isto ela não percebeu meus olhos marejados de lágrimas.

- Leia e veja esta pesquisa!

“População da América Latina está decepcionada com sua democracia. Maioria associa o regime à economia em crise e prefere autoritarismo que trouxesse prosperidade, diz estudo”.

- Você acredita nisso?

- Tudo é possível hoje em dia. Você está globalizada!

Disse para agradá-la tal a sua indignação com a matéria. E acrescentei:

- Em Trieste, Itália, está havendo debates sobre a globalização.

- O que você acha sobre isto?

- Sei lá Maria, estão chamando a globalização de “terceira revolução tecnológica” veja abaixo desta matéria.

“Bombas massacram civis e crianças no Iraque”

- Lázaro, você acredita no que dizem que a globalização vai deixar os ricos mais ricos e os pobres mais pobres?

- Já está acontecendo.

- Você não está sendo muito pessimista?

- Leia aqui o que esta matéria diz.

“A globalização não beneficia a todos de maneira uniforme. Uns ganham muito, outros menos, outros perdem. Na prática exige menores custos de produção e maior tecnologia. A mão-de-obra menos qualificada é descartada. O problema não é só individual. É um drama nacional dos países mais pobres, que perdem com a desvalorização das matérias-primas que exportam e o atraso tecnológico”.

Ficava observando Maria a discutir problemas que não era os dela. Mas de todo país. Mesmo gravemente doente, ela preocupava-se com o destino dos outros. Enquanto, tantos usavam a máquina só para brincar, gente até com certo nível de instrução. Por que poucos se preocupam tanto e tantos não se preocupam com nada? O homem que se conforma, aniquila o seu próprio “eu”, transforma sua vida em grande abismo. É um inútil para si mesmo e para a sociedade. Está morto para si e para o mundo. Ele pode ter vitalidade física, bons pulmões para respirar, saúde para dar e vender, mas vive só para transmitir este conformismo, qual doença avassaladora vai contaminando a sociedade.

Maria Rosa nunca se abateu com nada. Lutava para reerguer-se do desastre que foi ajudar alguém. E sempre dizia:

- Não me arrependo de nada. Temos que seguir adiante!

Tenho orgulho de sua amizade, prometi vê-la com mais freqüência. Falei-lhe sobre Carla e ela disse com expressão iluminada:

- Você está gostando dela. Tentei dissuadi-la que, agora, era casado e tinha uma família a zelar. Ela respondeu sorrindo:

- Explique isto para o seu coração. Só que ele é cego, surdo e mudo, quando não se trata de coisas que não são inerentes a ele. Gostaria de conhecer esta pessoa, se puderes me apresente. Prometi que isto seria em breve, despedi-me e beijei-a, agradecendo aos céus por ela existir.

Precisava ver Carla, meus pensamentos embaralhavam com rapidez, a dúvida pairava sobre minha cabeça como uma saca de sal, que levasse por onde fosse. O que realmente eu desejava seguir em termos de profissão? Gosto de escrever, de literatura, de música. Mas o ganha pão vem dos concertos e aulas dos computadores. No percurso da casa de Carla vou lembrando das notícias da Internet que acabara de ler. “Miséria atinge trinta e três por cento da população brasileira, dados da fundação Getúlio Vargas.

E acrescenta –

 “Os miseráveis no país tem renda mensal abaixo de setenta e nove reais. A erradicação da pobreza seria possível com a contribuição mensal de quatorze reais de cada brasileiro que está acima da linha de pobreza, o que daria um montante de dois bilhões por mês para investimentos em programas sociais”.

 O cálculo consta no Mapa do Fim da Fome II, confirmou o SESC Rio e a Organização Não-Governamental Ação da Cidadania.

O estudo localiza a miséria em cada unidade da federação. Detalha as condições sócio-econômicas e mostra que a pobreza agora se espalhou pelas grandes cidades, enquanto na década passada estava concentrada nas periferias.

“As grandes cidades foram atingidas pela crise social dos anos noventa e agora faltam políticas públicas integradas para resolver os dois principais problemas, que são a violência e o desemprego”, avalia o economista Marcelo Nery, coordenador da pesquisa.

O estudo mostra a relação do desemprego com a fome e a pobreza. Nas favelas do Rio de Janeiro o índice de desemprego atinge dezenove por cento da população. No Estado, a taxa é de nove por cento.

Ainda sobre as favelas cariocas, a pesquisa destaca que a Rocinha a maior da América Latina, e palco da guerra de traficantes de drogas, tem o nível de escolaridade mais baixo do Rio e a quarta menor renda da cidade.

Enquanto pensava nessas coisas lembrei-me da noite anterior, onde um grande artista nacional foi pego em Porto Alegre comprando quatrocentos reais de maconha. Ele deu um pulo na delegacia, fez declaração de dependente e retornou para o convívio com os outros grandes artistas. Este fato incentiva os vendedores de drogas. Ele sai na mídia, suas novelas dão mais ibope e seus filmes mais procurados. Tem sido assim com vários “grandes artistas”, jogadores de futebol, empresários, etc. Quem está na cadeia, são os pequenos traficantes.

“A Globalização necessita ser profundamente questionada por aqueles que a defendem”. Fico pensando. O sistema, que é elogiado pelo Fundo monetário Internacional, beneficia, sobretudo, pessoas que já são ricas e privilegia os seres humanos enquanto consumidores, e não trabalhadores. Ao derrubar fronteiras com vistas a exploração comercial, a globalização mercantiliza as culturas. Será que o mundo é melhor assim?

Um cão começa a ser perseguido. Ele não entende o por quê. Esquiva-se do seguidor que continua a importuná-lo. Atravessa a avenida cheia de carros, esquecendo o perigo de ser atropelado. Escapa dos veículos, não do perseguidor. Corre por ruas menos movimentadas, desconhece o que fez de errado. Mordeu alguém? Ele sabe que é dócil. Tem alguma doença transmissível? Sarnento? Não, pode ter alguma seqüela das ruas, mas nada que produza mal ao tal perseguidor. Procura vielas lamacentas para despistá-lo. Está com sede e estanca por um momento. Lá vem o seu algoz. Continua a correr, entra em um casebre para esconder-se em algum canto, é afugentado com um pedaço de pau e posto, imediatamente, para fora. O sol a pino sobre seu pelo faz com que comece a colocar a língua para fora. Suas pernas já não agüentam tanto cansaço, suas patas estão feridas, devido à fuga inesperada. Sente fome e dores por todo o corpo. Que inimigo atroz arranjou sem qualquer causa. Entra em um beco, combalido, no encalço de encontrar um buraco para refugiar-se. O inimigo é sábio e implacável, encontra-o e ao atacá-lo, o cão reúne as últimas forças e avança feroz contra ele. Ganindo de dor, reage violento, sente que o ponto fraco do homem é a sua garganta e atira-se na desesperada ação de vida ou morte. Fere o homem mortalmente, e enquanto seu perseguidor cai sofrendo as mazelas do ferimento o cão sai ganindo alto, como se ele próprio estivesse sido ferido. Os dois, estropiados, precisam de tratamento. O homem – a sociedade rica. O cão – os miseráveis que não encontram saída deste beco lamacento.

- Lázaro como você está pálido, disse Carla com voz suave.

- Nonada. O sertão está em toda parte.

- Andou lendo o bom mineiro, Guimarães Rosa?

- E sobre a globalização.

- Sinto que você não está bem. O que aconteceu?

- É mais fácil dizer o que não aconteceu. Estou questionando tudo. Do casamento a profissão. Da fé em Deus a um ateísmo profundo. O mal e o bem. O que é realmente belo e apenas aparência. Tudo é duvidoso e de um mau gosto profundo. Os meios de comunicação confundem a nossa mente. A música há muito é de péssima qualidade e querem nos obrigar a aceitar como se fora o máximo. As novelas prestam um desserviço a população. Todos querendo enganar a todos. Truques, frases de efeito, misturados a beleza física e ao sexo. Ninguém acredita em mais ninguém. Apenas aprendem em como passar o próximo para trás. Fazem isto em belas casas e mesas fartas como se essa fosse a realidade brasileira. Se a mulher está dando ibope com os seios e a bunda de fora então ela é a bola da vez. Se o homem sem camisa e de sunga está na moda, não se vê outra coisa. Já não suporto entrar em livrarias e ver os livros de auto-ajuda no mostruário, magros magos com clichês infantis e o povo comprando este lixo e vomitando violência. Acho que estou doente, Carla. Seriamente doente. O bem é Deus o mal é o diabo. Se eles existem creio que estamos sendo injustos com os dois. Nunca eles deram tanto ibope, nunca foram tão solicitados, renderam tanto dinheiro, ganharam e perderam guerras, derrubaram e elegeram presidentes, confundiram a burguesia e o povo, principalmente o povo, devido a escassa educação de qualidade. Carla deixe-me recostar um pouco na cadeira e se possível, toque uma música de Chopin.

Carla não disse nada. Dirigiu-se ao piano, abriu a tampa envernizada de madeira e começou a tocar o noturno número nove. Eu viajava naqueles acordes. Esquecia da mulher da rua Tocantins reclamando com o marido, o garoto do Ribonite, de dona Aurora raspando as paredes com as unhas, chamando por Cícero, Do Leandro odiado, de Maria Rosa deformada pela bondade com sua sobrinha Marlene, da minha mãe em conluio com minha esposa. Só restava a beleza da música de Chopin, suave como uma jangada em tranqüilo mar.

- Isto é lidar com os homens, Lázaro. Cada um com seus sofrimentos e desejos. Preocupa-te com as reações de Cícero, já que vai dar aulas a dona Aurora. Ele pode ser perigoso se achar que te envolves demais nas ambições dele. Vejo que a tua sensibilidade é para a arte. És sensível demais para lidar com o cotidiano. Ele pouco te oferece. Cada um tem as suas necessidades. Não adianta fugir do nosso instinto, o azeite não se mistura com a água. Entretanto os dois são necessários. Não se desespere, o tempo vai se encarregando de te mostrar o caminho.

Conversamos muito e sai mais sereno da casa de Carla. Como estava gostando dela, possivelmente, porque ela era o que eu gostaria de ser ou que fosse assim a minha esposa. Alguém com sensibilidade, condição social para levar sua arte adiante sem precisar estar se matando em busca do sustento, ou se era um amor verdadeiro que estava brotando entre nós.

Quando cheguei a casa de dona Aurora ela estava adormecida no sofá com a cabeça no colo de Cícero. Descobri, pois, quando toquei a campainha ele atendeu, fez um sinal com o dedo indicador nos lábios mandou-me sentar frente a eles e voltou para o lugar onde deveria estar. Pegou a cabeça dela com carinho e retornou para o seu colo. Descaradamente disse:

            - Ela está um pouco cansada e adormeceu.

Balancei a cabeça como se fosse tudo normal e fiquei em silencio a observar as coisas como se estivesse distraído.

Velhos retratos nas paredes de gente jovem, novos retratos de gente velha. Havia uma estante sem livros, que eram bibelôs, duendes, lembranças de lugares e mais retratos. Um deles em tamanho maior. Era de Cícero e dona Aurora os dois de cabeças juntas.

Lembrei-me do aviso de Carla para ter cuidados. Como abordaria este assunto? Perguntei em voz baixa para não acordá-la.

- Você tem certeza que devo dar aulas a ela?

- Por favor, faça isto.

- De que, por exemplo. Ela só se interessa por jogar paciência!

- Inventa qualquer coisa para passar o tempo, ela precisa se distrair e deixar-me um pouco mais livre. Qualquer anormalidade você me liga, ela tem o meu telefone.

- Disso eu sei.

 Sorri baixinho, pois não conseguia me controlar. Muito embora aquilo me estivesse fazendo mal.

- Vou acordá-la, pois tem uma menina esperando por mim!

Cortei a conversa para não chamá-lo de canalha.

- Qual a sua profissão?

- Faço “bicos” em construção, parte elétrica, pintura de parede. Quando tem serviços, é claro. A “coisa” aqui em Natal só melhora em épocas de temporadas.

Por favor, então acorde-a, pois tenho outras aulas para dar depois desta.

- Aurora, Aurora, o Lázaro está aqui.

Ela levantou a cabeça do colo dele. Estava com o rosto de quem dormira profundamente. Nem sequer me olhou. Já foi se lamentando.

- Meu filhinho vai embora? Fica mais um pouco.

Ele falou sério segurando o seu queixo enrugado.

- Aurora, tenho que ir, entendeu?

Ela balançou a cabeça afirmativamente como uma criança quando o pai chama a atenção. Ele beijou a testa dela e retirou-se rápido. Em um lance piscou o olho para mim. “Meu Deus que crápula, está me fazendo seu cúmplice. Está agindo comigo como se eu fosse uma peça do seu jogo”.

- Dona aurora vamos estudar.

Falei como se aquilo fosse sério e senti-me mais ridículo ainda. Ela teve dificuldades em caminhar para o computador. Lentamente, segurava nas paredes e repetia sem parar.

- Cícero foi embora! Cícero foi embora!

Comecei a ensinar os programas do Word. Com extrema paciência, Fiz exercícios de teclado, como ela deveria treinar a todo o momento, era desconfortável passar algum conhecimento para quem está em completa solidão. Ela não conseguia se concentrar em nada. Abri a janela do quarto para que o ar corresse, fluentemente. Havia um estado de opressão em todo ambiente. Levei-a até a janela, pedi que observasse as pessoas caminhando, umas apressadas outras tranqüilas, as cores das suas roupas, o verde das folhas das árvores e seus matizes.

-É importante verificar tudo isto, dona Aurora, acalma a mente. O gato  arisco atravessa a rua. Ele está só e não tem medo. Apenas, vive para caçar a sua sobrevivência. O seu medo é apenas biológico. O medo psicológico é do homem.

Ela ouvia com certa atenção, mas, automaticamente, qualquer ruído ela pegava o celular, abria-o e ficava falando só.

- Alô, Alô.

Fechava o aparelho e dizia em voz alta:

- Pensei que fosse o Cícero me chamando.

Passava alguns minutos, ela pegava o celular de novo e pedia-me.

-Confira aqui se as ligações não estão caindo na caixa de mensagem.

Eu fazia a sua vontade com paciência, sabia-a doente, ela coçava a cabeça com os cabelos desgrenhados. Levantava-se da cadeira e ia, continuamente, ao banheiro. Voltava e recendia um cheiro desagradável de urina. Colocava as mãos nas minhas costas e dizia:

- Vou beber um pouco de água, aceita?

- Não, obrigado.

Ela saía cambaleando até a cozinha, com o celular em uma das mãos. Às vezes ouvia-a reclamar, indignada:

- Merda, o Cícero não me liga!

Quando chegou a hora de sair, perguntei:

- A senhora não vai se alimentar. Dona Aurora?

- Tem um resto de quentinha na geladeira, vou aquecer.

Dizia de forma apática. Era claro que a vida daquela senhora perdera todo o sentido. A noção dos dias e até do mês que estávamos. O corpo estava na terra, mas o pensamento não parava de vagar no espaço. Ora lembrava algum fato do passado ora estava em Cícero. Pedi o telefone dele e ela alegrou-se:

-Ligue e peça para que ele venha me ver.

- Certo dona Aurora.

- Você não poderia me dar aulas todos os dias?

- Vou verificar a agenda. Se não puder todos os dias, pelo menos dia sim dia não, ok?

Liguei ao Cícero para comunicá-lo. Sei lá se eu não seria um estorvo para a vida deles. Não queria que me odiassem por intrometer-me em sua casa. O Leandro já me avisara. “Ele não quer ninguém junto dela. O ódio que nutrem por mim é por que sou seu sobrinho e sei da sua conta bancária. Antes, eu ia com ela receber o dinheiro da aposentadoria que era uma quantia considerável que o marido deixara”.

Telefonei.

- Cícero, aqui é o Lázaro, tudo bem?

- Tudo bem, o que é que manda?

- Dona Aurora quer que eu dê aula a ela todos os dias, talvez eu possa dia sim dia não.

- Ótimo, assim ela me deixa um pouco em paz. Estará se ocupando com outra coisa.

-Você não se importa? Com certeza?

- Claro que não. Estou com uma gata aqui de fechar o comércio, cara!

- É você tem sorte.

 Disse em tom de deboche sutil.

- Sorte nada. Eu trabalho muito para isto.

- É você trabalha.

 Disse em tom de blague.

- Depois a gente conversa, tchau.

Desligou imediatamente. Fiquei a pensar. Por que fui tão irônico? O que tenho a ver com a vida dos outros? Cada um que leve a vida como desejar. Mas, é possível viver sem se envolver com as situações? Não será covardia, viver sem tomar partido? Não será cômodo ver a injustiça, o mau caráter, a ingratidão e ficar passivo? Quando estive na casa de Maria Rosa, não quis dizer para ela, mas, eu tinha encontrado Marlene com o seu “Coronel”. Eles estavam de braços dados observando as lojas. Ela parecia uma madame, Estava elegante dos pés a cabeça. Olhavam as vitrinas, felizes como se não trouxessem uma aleijada nas costas. Alguém que os tinha amado e por eles adoecera a ponto de prejudicar mortalmente a sua saúde. Antes de despedir-me Marlene piscou o olho toda faceira para o meu lado. Era só o “Coronel” distrair-se com algo, e ela fazia caras e bocas tentando uma conquista barata. Então, reforço a pergunta; Como poderemos ficar indiferentes a esta canalhice que nos deparamos dia-a-dia? Geralmente, me afasto do canalha, sorrateiro, porque isto nos faz mal. Uso da minha timidez, para livrar-me desta gente.

 No caso de Dona Aurora, sentia uma profunda pena, fui solicitado e não poderia fugir. Entretanto, o que eu poderia fazer por ela? Distraí-la, com o computador para que ela descansasse um pouco da lembrança do Cícero? Era um palhaço sem circo ou picadeiro. Ali, não estava a prova do conhecimento técnico mas, da capacidade humana.

A insensibilidade é uma tirania que o homem permiti que subjuge a sua alma. O homem insensível está sujeito a todos os vícios, a degradação, a vileza, a ingratidão, e conduz o seu espírito a desintegração e ao caos. É a morte do milagre que se chama vida.

Fiz tudo para que a flor da sensibilidade aflorasse em Anita. Lia em voz alta, no aconchego do nosso quarto, literatura de qualidade e accessível para que ela entendesse. Ah, quantas vezes tentei! Ora se tentei!  Depois de muito tempo de leitura, acreditando que ela estava interessada, ela pegava o livro e procurava saber quem havia me emprestado, se era Carla ou qualquer amiga. Os  mais freqüentes que me emprestavam seus livros. Ou se havia tirado do computador a literatura. E começava a discussão.

- Ela está interessada em você, não?

Eu levava um susto achando que estava se interessando pela filosofia da história. Aí começava a discussão. “O que desejam estas mulheres de você?” Assim, como quando eu lia no computador”. Casa de Pensão”, “O Grande Inquisidor”.

- Como é que você desperdiça seu tempo e dinheiro gastando o nosso telefone, luz, com estas porcarias?

O meu telefone celular era vigiado. Ela queria saber quem era Cícero, Leandro, Carla, ou quem se atrevesse a me procurar. Por que esta gente ligava tanto? O que eles representavam em minha vida? Verificava que horas eu saia das aulas, por que me atrasara tanto para chegar em casa, Agora seu ciúme partia para dona Aurora, Só não tinha ciúmes de Maria Rosa, porque sabia da história que ela estava entrevada em uma cadeira de rodas. Minha mãe corroborava com ela.

- Você esta certa, minha filha. Com homem não pode dar mole não.

O cansaço me abatia e eu desistia de conversar algo mais sério. Até que a raiva passasse e escolhia um dia mais calmo e tentava de novo, sem sucesso. Não adiantava dizer que toda boa arte é moralizadora no sentido de descobrirmos o “eu”, e ajudar-nos a vencer e sublimar as paixões, a mesquinhez, o ócio que adoece a mente de quem não sabe estar em silêncio.

- Besteira! O que estes livros sabem fazer é te afastar da família. Gastar dinheiro com esta baboseira.

Meu sangue fervia. Na verdade deixamos muitas vezes de fazer amor, com revolta de como havia me envolvido nesta armadilha. Minha esposa nunca vai entender a sede que tenho de questionar, aprender ou até mesmo de um dia produzir arte. Pode ser que a luz fraca que tenho não dê para iluminar aquela escuridão. Ou na pior das hipóteses há seres que nasceram para cultivar a luz outros para tatear nas trevas.

O que Anita queria de mim? Já tínhamos nos casados. Estávamos morando com a família, trabalhava desesperadamente para ganhar o nosso sustento,  Quais eram os seus sonhos? Vigiar-me, cheirar minhas roupas, ligar, continuamente, para saber o meu paradeiro. No entanto, ela sabia que eu era um sujeito calmo, vivia para a família. Contava-lhe detalhes do que se passava no trabalho. Falava não só para que não houvesse desconfiança, mas para termos o que conversar. Entretanto qualquer coisa que contava era motivo para que criasse ranços com as pessoas.

- Não esta pessoa nem quero conhecer, dizia: E tome cuidados com elas.

- Anita estamos ligados a uma só corrente. Pode haver elos danificados; Uns são feitos de materiais sólidos, uma liga nobre, uns apodrecendo com a ferrugem da maldade, entretanto ainda estamos ligados. Nossa função é que não deixemos que esta corrente se parta. Vamos juntos tentar melhorar o nosso mundo, o que está ao nosso redor. Sei que não chegaremos a perfeição, pelo menos a paz.

- Você é um sonhador! As pessoas fazem de você um idiota e nem ligas para isto. O Cícero, por exemplo, deveria estar na cadeia.

- Um dia ele descobre que está errado. Pode mudar. E aí? Se todos os homens que deixam aflorar o mau que existe em cada um tivessem que ir para a cadeia, o mundo estaria vazio, porque um dia por um motivo ou outro o mal nos aflora ou em pensamentos ou em ações. O importante é educar a fera que existe em cada um para que isto não se torne um pandemônio.

- Que esta gente se dane! O que quero é o bem estar da minha família, o resto não interessa.

Anita sabia dos meus sonhos e necessidades. Precisava fazer uma faculdade de informática. Porque dentro em pouco estarei defasado. A tecnologia não para. Precisava aumentar o número de aulas para juntar um dinheiro e tentar a faculdade no próximo ano. Não quero migrar do meu estado. Imagino como se vive em outras terras. O que passaram e passam. Quero ter minha identidade aqui. Vim do interior e sei como é a vida dos cortadores de canas, dos pescadores, dos meeiros, das famílias que trabalham com a mandioca fazendo a farinha e derivados, de outras que vivem com setenta e nove reais de ajuda do governo por mês. Aguardando chegar cestas básicas. É um inferno, a multidão se aglomerando na praça, os doadores com bonés e siglas dos partidos impondo o voto. Sei dos trabalhadores nos caminhões de lixo da cidade que tem de embriagar-se para suportar o mau cheiro, dos catadores de papel e de latas de cervejas e refrigerantes. Tudo isto, eu tenho medo. Todos estamos sujeitos a isto quando não se tem uma mão de obra qualificada. A globalização avassaladora cada dia nos empurra para este beco. Nos discursos do Palatino, dizem de boca cheia e com todo orgulho. “Esta Nova Europa é a que visualizamos como a Europa do Ressurgimento, a Europa que renasce das cinzas da Segunda Guerra Mundial, a Europa que recupera a sua importância internacional na história mundial, a Europa que consegue alcançar a Paz e a Democracia, a Europa que integra os seus povos, as suas culturas, o seu mercado, a sua moeda e a sua infra-estrutura”.

Quando eu dizia:

- Anita não deixe que nosso amor se transforme em apatia, não me distancie de você, ela respondia sorrindo:

- Eu sou mais eu na cama. É aqui que o amor fala mais alto.

- Eu respondia, não, não é só na cama. É também na cama.

Assim vivíamos em eterna dualidade

Não havia jeito de dona Aurora aprender nada. O simples exercício de teclado ela não conseguia. Ora dizia que não enxergava direito ora que estava velha demais. Entretanto, quando conectava a Internet ela ficava feliz com as imagens que surgiam diante da tela.

- Veja, veja, “em Najaf combates deixam mais de quarenta iraquianos mortos”. Meu Deus, onde vamos parar?

- A senhora se preocupa com isto dona Aurora?

- Claro, Ontem na TV. Disseram que iriam mudar a bandeira deles, tirar o nome de Alá. Que se cuidem os barracões dos templos afro-brasileiros.

Comecei a rir sem parar. Via os porta aviões ancorados, principalmente na Bahia explodindo os terreiros espíritas.

- O senhor está rindo? Eles que parem de falar em Olorum, Oxalá, Jeová  porque senão eles entram no fogo.

Eu não parava de rir.

- Me diga uma coisa, Lázaro. Na moeda deles não esta escrito “God bless América”?

- Está dona Aurora.

 - Então temos que mudar o nome de Deus também. Chamá-lo de God, se não o pau pode quebrar pra cima de nós. Ah vai ficar tão sem graça a gente dizer; “Valha-me God”. Parece que ele não vai nos ouvir, não é?

            - É dona Aurora, Mas, pelo amor de God, vamos estudar!

            Eram assim nossas aulas, De vez em quando ela telefonava-me perguntando:

            - Hoje não é o dia de nossa aula?

            Ela sabia que não era, porque logo depois emendava com perguntas:

- Como está o senhor? Trabalhando muito? E a sua família? Eu dava corda, sabia que ela queria conversar com alguém.

            Certa vez arrisquei a intimidade:

            - Dona Aurora, não tem uma menina ou uma senhora para vir pelo menos uma vez por semana dar uma olhadela na sua casa?

            - Como olhadela?

            - Ajudar a senhora a ajeitar a casa?

            - Está muito suja não é? Vou falar com o Cícero agora mesmo!

            - Não, não precisa ser agora, depois a senhora fala.

            Quando retornei, havia uma senhora fazendo faxina. Enquanto ela estava no computador, fui à cozinha beber água, propositadamente, e falei com a senhora:

-  Não esqueça de dar banho nela, certo?

Notava que a pintura da parede ainda estava em suas unhas.

- Dona Aurora, quando o Cícero virá pintar sua casa?

Seus olhos se iluminaram, o rosto irradiava alegria.

- Fale com ele! Por Deus, Olorum ou God.

Ela exclamou quase sem respirar.

- O senhor fala com ele?

- Falo dona Aurora.

Ela avançou sobre mim e beijou-me a testa. Fiquei emocionado. Que amor é este, que de repente faz florescer uma paisagem invernosa em plena primavera? Como uma pedra retirada de cima de uma planta, que imediatamente revigora-a, provocando a esperança da flor. A revolta que tinha do Cícero, diminuiu. Que importava se ela pagasse os momentos que estivessem juntos? Aquela felicidade não tinha preço. Nem rótulos que a sociedade costuma dar. A felicidade é o único remédio para nossas almas. Por um instante, invejei o sorriso de dona Aurora e pensei em Carla.

Saí dali desesperado para vê-la. Seu rosto calmo, alegre, foi alívio para o meu sofrer. Ela olhou-me e exultante disse:

- Lázaro que bom você aqui.

- Precisava ver você hoje de qualquer maneira.

Aproveitei que a mãe dela estava no interior da casa e dei-lhe um beijo leve nos lábios. Ela fechou os olhos. Tenho certeza que também queria.

Frente ao computador disse-me:

- Não pense que o que sinto é diferente. Tenho medo de estragar sua vida. Você escolheu um caminho e deves refletir os teus passos. Não podemos fazer nada impensado. Por acaso achas que não me preocupo com teu futuro? Que não sofro sabendo do desgaste do teu trabalho? Ah meu amigo, se não fosses casado e com filho a coisa seria muito diferente. Deixa o tempo passar. Não sou mulher de aventuras, se bem que uma loucura contigo seria adorável.

- Carla não quero prejudicar tua vida, mas não consigo parar de pensar em você.

- Venha me ver quantas vezes quiseres. Estarei sempre ao seu lado. Até que tenhas certeza do que queres. Minha mãe já notou, não se envolve porque sabe que quando eu tomar uma decisão será acertada.

Ficamos conversando e permaneceu o desejo de fazer parte do seu destino.

- Vou ficar uns dias fora, minha esposa quer passar o carnaval em Macau.  Assim que chegar venho lhe ver.

Dona aurora, não parava de me telefonar. Antes de viajar dei um pulo a sua casa. Estava de banho tomado, cabelos presos com uma marrafa; trazia uma pequena flor branca do lado direito entre os cabelos. Assustei-me, e a senhora que a cuidou perguntou-me:

- Viu como ela está bonita?

Desta vez fui eu quem dei um beijo em sua testa.

- O que houve dona Aurora, não era dia de aula?

- Meu filho! Desapareceu a seta da tela do computador

Fiquei pasmo, era a primeira vez que me chamava de filho, suas unhas estavam limpas e o corpo com cheiro agradável. Corri no mouse e verifiquei que ele havia sido raspado até dar defeito. Falei com carinho sem que ela ficasse envergonhada:

- Dona Aurora o nome dessa seta que desapareceu chamasse cursor. Quando a senhora quiser me ver não precisa estragá-lo. É só me ligar.

- Não, não fiz isso, disse envergonhada.

- Não precisa ficar sem jeito. Eu já aprendi a gostar da senhora, só não quero que tenhas prejuízo à toa. Cadê o Cícero?

- Ele veio aqui me beijou, depois saiu apressado. Sabe como é essa desgraça de véspera de carnaval. Ficam todos com a cabeça perdida. E a gente fica só. Ah, como a gente fica só!

- Não se desespere. O estar só não machuca ninguém. A senhora tem as suas lembranças boas e más, pense nelas. Faça treino com sua memória escrevendo qualquer coisa de suas experiências. Leia um livro, vou deixar um para a senhora ler. Pense em cada frase. E aproveite o silêncio, faz bem para o espírito.

- Ah meu filho como você é bom.

- Não, não, sou humano. Esta é a minha função. Estamos todos no mesmo barco dona Aurora. É só ter paciência. O carnaval passa, a dor passa e a vida passa. Boa ou ruim a existência passará. Pode me ligar no carnaval e conversaremos bastante, certo?

Tirei da minha pasta de ferramentas um mouse e adaptei-o.

- Pronto aqui está o computador novinho!

Ao despedir-me beijei-lhe a testa, novamente. Ela puxou-me o rosto e beijou-me a face.

Às quinze horas do sábado de carnaval, eu estava no ônibus seguindo para Macau com minha família. É possível que você me ache um chato, um jovem que envelheceu precocemente. Na verdade nunca gostei de Carnaval. Nunca gostei de muita festa, gente pulando, rindo em voz alta, gritando. Sou a massa que se desprendeu da maioria, não por opção, mas porque não teve a liga para ficar grudada nela mesma. Gosto do silêncio, a quietude do viver.

No ônibus estava o tumulto. O ar quente entrava pela janela sufocando-me. Ao chegar em Macau já era noitinha, e meus ouvidos estavam cheios do barulho que iniciara desde Natal. O ar tornava-se pesado e o cheiro peculiar do sal, reavivavam a memória. Adriano, o amigo de infância que me deu um caminhão de madeira e que brincávamos. A alegria de Anita dizendo que se casaria comigo. Agora ela está ao meu lado, de cara emburrada. Nem sei o por que. As mulheres seminuas pulando e ela com um olho nas mulheres e o outro em mim. Não me importo nem com uma nem com outra situação. A única coisa que penso é quando vou ficar tranqüilo. Ou por que eles são felizes e minha mulher tão carrancuda?

Da janela do ônibus um fato me chamou a atenção. Vi o roncar de uma moto que me parecia familiar. De fato era o Cícero com uma bela garota na garupa, dei um sorriso, introspectivo, pensando”. Esse sacana está sempre no lugar certo, com a pessoa certa, vivendo o que acredita ser verdadeiro”. Todos diziam que o carnaval de Macau era o melhor do Rio Grande do Norte e lá estava ele em grande estilo. Ele tem coragem. Uma desabrida coragem de passar por cima de tudo e ser feliz.

 Chego à casa dos sogros. Sempre que vou a casa deles lembro a primeira vez que ali entrei para oficializar o casamento. Empertigado, tentando aparentar uma coisa que não tinha; segurança. Havia uma infância no rosto, nos gestos, no olhar que perdi. Uma esperança também. Acreditava que tudo iría mudar, quando Anita e eu estivéssemos juntos. Seria a alegria e a dor compartilhada, a luta e a esperança. Repartiríamos as vitórias e a vida se tornaria mais leve para ambos. Tenho saudades de quem fui. Dos sonhos delicadamente costurados, do aroma da salsa que dominava a cozinha. Da alegria dos futuros sogros. Quando pedi permissão para casar o pai de Anita perguntou-me de chofre:

Qual a sua profissão mesmo?

Tive um susto. Pronto, agora ele vai empatar tudo! Correu-me um calafrio. Respondi fingindo segurança;

- Técnico em computador.

- Isso tem futuro mesmo? Cuidado com essas profissões novas. Eu acredito mais no trabalho com a terra, com a pesca, na caça ao goiamum. Ele vive em lugares lamacentos, a beira-mar, escondidos nas tocas profundas dos manguezais, mas está sempre lá.

- Que é isso, papai, que ignorância é essa?

- É o que acredito Anita. É o que acredito!

Ele quase me desestruturou. Tinha certeza no que acreditava, eu não estava certo de nada. Até hoje quando estou frente a um computador, ao faltar energia, dá-me um pânico. Pronto, foi-se embora o meu trabalho. Frente a mim apenas um amontoado de peças quando se apaga. Lembro imediato do meu sogro, “o goiamum está sempre lá, nas tocas profundas”.

Havia visitas na casa, “carnaval é sempre assim”, Macau fica lotada. Fiquei mal acomodado. Tudo que não gosto estava presente. Musica alta, gente por todo lado, Anita de cara amarrada. Saia a procura de um canto sossegado e o povo lá estava cantando “levantar poeira”. Blocos coloridos de grandes figuras de pano, “Baiacu na vara”, passavam gritando em agitação infernal. Nada era igual como antes de casar-me. Assim transcorreu o domingo que “ferveu” nas ruas. Não sei como o Cícero e sua moto, atravessava a multidão. Na segunda feira retornei.

- Anita já não agüento. Vamos retornar, hoje?

- Você sempre arranja um jeito de me contrariar, só volto no fim do carnaval.

- Desculpe, mas retorno hoje.

Dei graças a Deus quando na segunda feira pegava o transporte para Natal. Deixei para trás os blocos, os bonecos de pano, as charangas, o povo pulando em delírio, bêbados caídos nas calçadas, e Cícero com sua moto, uma das últimas pessoas que vi.

Da janela do ônibus observo a paisagem às vezes verde às vezes esbranquiçada, mulheres puxando crianças pelas mãos, grandes blocos verdes de plantações que resistiram ao sol. Coqueiros, coqueiros, coqueiros amarelados, pequenos, esverdeados, com seus pendões acenando para o céu na brisa que nunca cessa. Cocos esparramados ao chão anunciando novos coqueiros. Coqueiros que trago n’alma que é minha fortuna e pobreza, alegria e angústia, música e silêncio. Coqueiros envergados pelo tempo. Coqueiros desprovidos de sua copa por algum vento forte, coqueiros velhos, ressequidos. Passam rápidos pelo meu olhar desesperançado, como se me cumprimentassem às vezes em mensagens de uma nova vida, às vezes em adeuses lacônicos, desesperados. Coqueiros, coqueiros, coqueiros da infância sonhadora, da juventude incerta, do amadurecimento sofrido. Selva de coqueiros e areais que escrevem a minha história. Oportunamente, clara ou escura. Coqueiros no meu olhar para a vida inteira.

Desço na rodoviária com o mesmo sentimento que durou a viagem inteira. Estou agitado, há outro ser dentro de mim. Uma insatisfação que vem lentamente se desenvolvendo em minha mente. Dia-a-dia me persegue como uma sombra. Cresce e se agiganta com vontade de se exteriorizar. O homem calmo que sou já não é o mesmo. Fui mudando com o descobrir não o que quero, mas o que não quero. E isso é firme e decidido. Como um doente que não consegue mais tomar o remédio. Pelo horrível sabor, a certeza que do jeito que sou não conseguirei sobreviver. Qualquer ruído me aborrece. O cotidiano me oprime, com as mesmas roupas, o corte de cabelo que não muda , a frase sabida antecipadamente, os reclames de qualquer gesto que faça; o sonhar, o ler, a música preferida que irá aborrecê-la. A poesia que se esconde e se mostra dependendo do olhar. Meu Deus vou ter que viver com Anita até o último dia da minha vida? Como os coqueiros que não saem do meu olhar, ela está encravada na alma.

Não quero pensar em nada, mas é inevitável.  O telefone celular toca. É Carla. Ainda bem que consigo apagar a ligação para que Anita não saiba.

- Carla, que saudade! Estou em Natal. Larguei tudo e retornei.

- Você está sabendo? Diz em voz embargada.

- Sabendo o que?

- Dona Aurora está morta!

- O que você está me dizendo?

- Ela foi assassinada. Está em todos os jornais.

- Quem fez isso?

- A polícia ainda não descobriu. Está um rebuliço.

- Certo. Estou chegando em casa. Vou comprar o jornal depois te ligo. Estou atordoado. Um beijo.

- Não deixe de ligar.

Corri a primeira banca de jornal e pedi os dois principais. A matéria estava na primeira página. Minhas pernas tremiam. Eu não conseguia ler. Só via a imagem do Cícero com a bela mulher na carona de sua moto. Que sangue frio. Brincando carnaval. Ah, Isto é demais! Isto é demais! Que caráter é este? “Deram remédio à senhora e sufocaram-na”. Vou lendo aos pedaços, como se estivesse tomando pílulas. “Roubaram jóias, dinheiro e talão de cheque”. Que assassino ordinário, não precisava matar a velhinha. Lembro da última vez com uma flor no cabelo. Meu Deus! Uma pessoa indefesa e solitária.

Entro em casa e ponho água para ferver. Quero tomar um café quente. Antes tomo um copo d’água. Estou sem controle. Sento-me no sofá; Aurora, Carla, Anita e o outro eu que se agiganta sempre, independente de minha vontade.

É tarde para ir à casa de Carla. Tento dormir e a noite inteira me reviro na cama. Entre um cochilar e outro, tenho pesadelos horríveis. Vejo dona Aurora sorrindo com a flor no cabelo. Outras vezes ela no celular, reclamando a ausência de Cícero. Levanto-me com o corpo moído da viagem e das más notícias. Tomo um banho rápido e vou à casa de Carla.

- Que grande carnavalesco você esta me saindo, hein?

- Nem brinque ainda bem que hoje termina esta história.

- Você já pensou na possibilidade da polícia te convocar para dar declarações sobre dona Aurora?

- Eu por que?

Sei que empalideci. Carla riu tentando me acalmar.

- Ora isso é normal. Você era o professor dela. Eles estão procurando o culpado. A senhora que ia ajudá-la declarou que nada sabe. Que não ia todos os dias. O Cícero está desaparecido...

- Não, não, Carla ele está em Macau.

- Como?

- Via-o sempre com sua moto.

- Será que alguém tem coragem de matar e roubar uma pessoa e sair para divertir-se no carnaval, Lázaro?

- Sei lá, hoje em dia tudo é possível, Carla. Mas, por que ele faria isso se era ela quem financiava a sua ociosidade?

- Pode ser que com ciúmes ela não tenha lhe dado dinheiro e com raiva...

- Assim como não podemos descartar que possa ter sido o sobrinho, ela sempre se referia a ele como vagabundo.

- Carla, quando uma mulher ama um homem ela fica cega para os seus defeitos.

- Acho esse pensamento ultrapassado. Digamos que quando alguém ama outra pessoa, finge até que não vê os seus defeitos para continuar amando, mas se é uma pessoa coerente ela sabe a quem está amando.

- Gostei da defesa sobre a mulher. Outra coisa, não lembramos da  empregada!

- Coisa absurda, Lázaro. Mania de filmes policiais, a empregada não é uma senhora de idade?

- Sim, e daí? A idade tem garantia de caráter?

- Ainda temos respeito pela velhice. Não esqueça que somos de um Estado pequeno e que guardamos muito da nossa criação.

- Você esquece que somos bombardeados por informações do mundo inteiro através dos meios de comunicação?

- Vá lá, mas não gosto desta idéia.

- Estamos vendo pelo lado policial. Daqui a pouco todos estarão sob investigação. Inclusive eu.

- Céus, inclusive você!

Carla começou a ruborizar, senti que temia por humilhações que eu poderia passar. Levantou-se, mudou de assunto, sentenciou:

- Tenho certeza que não se alimentou hoje.

Antes que eu respondesse dirigiu-se à cozinha e trouxe café, leite, biscoitos, e mamão. Arrumou com toalha um pequeno espaço na mesa.

- Favor alimentar-se, urgente!

Vi no olhar de Carla profundo carinho e apreensão. Os olhares conversavam mais que os lábios. Eu sabia que a partir daí ela ficaria nesta preocupação até o desfecho do caso. Eu sofria agora duplamente sabendo-a preocupada. Uma revolta que Anita era quem deveria estar comigo dividindo as preocupações. Simplesmente não se interessava por aquilo que não fizesse parte do seu universo. Era como se eu estivesse solto no mundo. Não tinha coragem de confessar isto a Carla. Tinha vergonha de dizer que minha própria esposa não daria a mínima ao fato. E o cotidiano a nos separar incondicionalmente, cada vez mais distante.

Quando fui para casa já nenhum traço de carnaval havia nas ruas da cidade. Apenas notícias dos lugares onde a festa se concentrava. Macau, Pirangi do Norte, Redinha. Tentava ler um livro e o pensamento fugia para dona Aurora e Cícero. O sofrimento dela findara o dele iría começar. Nos ouvidos, ainda o som das vozes do povo gritando “Levantar poeira” e os cantores agitando os foliões um refrão contínuo, “Tira os pés do chão”. Eram eles que comandavam a massa que obedecia cegamente. Assim, adormeci no silêncio da casa. Só, como sempre estive em minha vida. Qual a rosa que se balança e se protege no meio dos próprios espinhos. A se despetalar no calor do sol e da brisa. Amanhã esta casa estará cheia e continuarei só no centro do grande burburinho. Nós não deveríamos ter-nos casado Anita... Não deveríamos...

No dia seguinte, liguei o computador, li no jornal, que Leandro comparecera a delegacia, “chorando a morte da avó e pedindo justiça”. Tudo o que havia me contado, sobre o Cícero ele discorrera em depoimento. “Assassino foragido” artigo que encabeçava a matéria. Na foto, via-se Leandro chorando ao sair da delegacia. Não se falava outra coisa na cidade. Pensei: “agora o Cícero está perdido. Para onde terá fugido?” Comecei a fazer trajetória fictícia. Teria escapado para o Ceará ou Paraíba? Estaria escondido em algum município do Rio Grande do Norte? Na tromba, nas patas ou no rabo do elefante?

Na parte da tarde recebi um telefonema.

- Lázaro, é o Cícero. Dizia em voz lacônica.

- Cícero?

Antes que pudesse dizer qualquer coisa ele continuou:

- O que fizeram com a Aurora?

- Cícero, você está metido em uma enrascada!

- Cheguei de Macau agora, e estou indo a casa dela para conversar com a senhora que a ajudava. Você veio dar aulas a ela no carnaval?

- Claro que não, ninguém trabalha no carnaval!

Pensei em dizer que ele era o principal suspeito e que se cuidasse, mas quando perguntou se eu havia dado aulas no carnaval, senti que desejava envolver-me naquela enrascada. Senti uma raiva profunda. Vontade de gritar no seu ouvido: “meu amigo quem vive do dinheiro da velha, quem ganha roupas da moda e tem uma moto à custa dela é você”. Calei-me. Para não piorar a situação, e não entrarmos em nenhuma animosidade, Não demorou muito minha esposa chegou com meu filho, irmã e minha mãe.

- O que está havendo com você? Perguntou Anita

- O que é que tem? Respondi quase agressivamente.

- Você está com aspecto transtornado, meu filho!

- Mataram dona Aurora durante o carnaval. Ninguém sabe quem foi.

- Ah, meu Deus! Você está enrascado com a polícia, vá logo a delegacia dizer que foi o Cícero que vivia ás suas custas. Antes que você seja envolvido.

- Mãe não vou fazer isto, pois o Cícero estava em Macau durante todo o tempo. E não posso acusar ninguém sem provas.

- Você arranja cada amigo, francamente!

- Anita, o Cícero não é meu amigo. Conheci-o através do meu trabalho. E, chega de me aborrecerem com perguntas que não sei responder.

A casa tornou-se uma balbúrdia. Desarrumavam as malas. Meu filho chorava de fome ou de cansaço da viagem, Anita dizia que eu precisava mudar de profissão que esta me deixava exposto a conviver “com todo tipo de gente”. Minha mãe exclamava; “Vão terminar envolvendo meu filho com a polícia!”. Vesti uma camisa e sai sem destino. Tudo se misturava na minha cabeça. Será que dera tempo do Cícero vir a Natal matar dona Aurora e retornar para Macau, arranjando, assim, um álibi? Em que poderiam me incriminar? É certo que eu tinha vindo um dia antes do fim do carnaval, mas eles não teriam a coragem de me acusar, eu não tenho cara de assassino! Mas, como é mesmo a cara de um assassino? Um homem qualquer pode, inesperadamente, dar um pão de esmola com pena do indigente ou tocar fogo no seu corpo para livrar-se dele, isso depende da essência do indivíduo. A violência banalizou-se tanto com a situação social, as maldades das novelas, as armas modernas dos bandidos nas favelas, os filmes de ação, que a morte de uma velhinha torna-se vulgar nesta guerra urbana que travamos. Quando dei por mim estava conversando na sala de Maria Rosa.

- Que coisa lamentável, Lázaro.

- Posso perguntar uma coisa muito íntima, Maria?

- Claro que pode. Não temos segredos. Somos pessoas sérias que analisam o mundo que vivemos, até para nos conhecermos melhor.

- Você, depois que passou por todos os prejuízos financeiros, amorosos, clínicos, ajudaria sua sobrinha?

Ela franziu a testa, com as mãos retorcidas, observou.

- Não quero fazer papel de mártir, até porque não sou. Confesso a você que ajudaria. De longe, mas ajudaria.

Céus! Olhei a minha amiga naquela cadeira e boquiaberto perguntei:

- Por que?

- Porque no dia que deixarmos de acreditar no próximo estaremos perdidos. Não haverá motivo para continuarmos a viver.

- Você faz disso uma bengala para continuar a viver ou projetou um lugar no céu?

- Por incrível que pareça, esta mulher entrevada que você vê, não precisa mais de bengalas, nem acredita que exista lugar no céu para esta multidão desesperada desde o princípio do mundo. O que ainda acredito é no ser humano. Ele um dia vai se encontrar, recompor, aprender a valorizar o paraíso que temos – a Terra.

- Maria, Deus te fez uma pessoa excepcional.

- Lázaro, Deus não tem nada a ver com nossos instintos e pensamentos. Nós é que temos que cultivar a razão. Ghandi estava certo, se nossa filosofia for “olho por olho, ficaremos todos cegos”.

Ela havia feito adaptações na sua casa; biblioteca, mesa de refeições, guarda-roupa, tudo estava ás suas mãos, e com isso a parte superior das paredes eram vazias, inúteis, desertas. Quando eu ficava de pé, sentia-me um gigante a fitar as paredes brancas, inóspitas. Aquilo me provocava um desconforto que de imediato procurava sentar-me. Para sentir-me integrado ao seu mundo.

- Maria você é um livro que tenho o privilégio de ler.

- Sei que existe um escritor dentro de você, que está prestes a florescer.

- Se você fosse escrever qual o tema ou frase dirias sem titubear?

- Ah, diria que o principio e o fim do homem está nele mesmo. Por isto precisa fazer bela a sua historia.

Dei um beijo em sua testa e despedi-me com promessa de retornar em breve.

O que é matar alguém? Sair de casa com esse propósito. Decididamente escolher uma arma. Apanhar uma condução e dirigir-se a casa da vítima. Bater a sua porta e ser aberta pela pessoa que está prestes a morrer. Com certeza, um beijo solto nos lábios e a idéia fixa de assassinar na cabeça. A pergunta com voz ingênua - como está o seu algoz? A resposta evasiva do assassino. A mão que cumprimenta na ânsia de matar. O olhar que ilude ao encarar o outro olhar, com receio que a vítima veja o espelhar da morte. Como é provocar o último instante de um ser que nasceu, amou e foi amado por alguém; seus pais, marido, filhos. Olhar o sol e deliberadamente condenar alguém a não mais vê-lo, nem no dia seguinte, nem nos outros, nem eternamente. Com que direito se faz um coração parar, condenar o próximo a não sentir o frio que se aquece deliciosamente com o vinho. Ou o calor que se refresca com as águas do mar. Que desejo incontido é este de sufocar têmpora e olhos e nariz e garganta e dizer consigo mesmo – Daqui a pouco não mais iras respirar, teu coração não terá o direito de pulsar de amor, tua mente não tecerá filigranas de esperança de viver a claridade do dia nem das estrelas que bóiam descuidadas a noite no escuro do céu. É lamentável rasgar um livro que você não escreveu. Censurável destruir um quadro que você não pintou. Horrendo tirar uma vida que a sábia natureza criou. Matar diz a mente cruel trajando as roupas do destino. E depois? Com esta mesma mão cumprimentar um amigo, segurar uma flor e apontar o céu. Abominável, eu não quero esta mão para apertar, esta voz que fez do murmúrio o silêncio, este olhar que presenteou a vida, o túmulo. Este ser que se fantasiou de Deus.

À noite no jornal do Estado entre as resenhas dos melhores momentos do carnaval aparecia um episódio novo e chocante. “Preso o assassino calculista”. Aparecia o Cícero algemado, de cabeça baixa, sem camisa com uma bandagem na cabeça. A mesma que usara brincando o carnaval. Não dizia palavra, parecia que seu rosto estava inchado. E dois policiais o ladeavam dando entrada na delegacia.

- Meu Deus, O Cícero, Que pena!

- Que pena? Este cretino deveria apodrecer na cadeia, disse Anita. Interrompendo o resto da reportagem. E continuando:

-Você deveria se envergonhar de ter um amigo desses. Sai de casa diz que vai trabalhar e se envolve com gente deste tipo. Francamente, você já foi mais responsável.

Não respondi para não desencadear discussão. Fui para o computador agendar o trabalho para o dia seguinte. Atrás de mim os reclames de minha mãe em coro com Anita.

Havia prometido a mim mesmo que este ano vou trabalhar, arduamente. Preciso guardar dinheiro para fazer a faculdade. Entretanto estou começando mal. Há mais aulas sendo canceladas do que agendadas. A concorrência está acirrada. Cada dia novas lojas de autorizadas aumentam. Sei que ando falando sozinho pelas estradas, quero realizar meus sonhos, alugar uma casa melhor com um quarto onde possa fazer um pequeno escritório com livros e começar a escrever. É outra profissão que não dá dinheiro. Mas, diachos! A gente precisa fazer um pouco do que gosta, senão para que vale esta vida? Que ninguém leia, não importa, mas decidi que um dia vou escrever um livro. Desde criança gosto da leitura! Ah, meus pequenos sonhos eles não roubam, isso não!

Os dias se passavam lentos e quentes. Pensei em trabalhar como garçom nos fins de semanas, mas só há vagas nas grandes temporadas. Natal está mudando rápido. Nativos trabalhando em restaurantes. Catraieiro fazendo limpezas em pousadas, Pescadores que aprenderam a fazer pizzas, com altos chapéus brancos, engomados, violeiros que faziam belas serestas, correm atrás de fregueses para fazer convites de aniversários, ou lavam louças, cujos donos quase sempre são estrangeiros, cariocas, mineiros, paulistas. Tudo está mudando aceleradamente. Os homens da pesca tornam-se vigias de edifícios, porteiros, lavadores de carros.

Em um destes dias que seguia para casa de um dos poucos alunos, vi em nota no jornal, informando que o laudo do crime constatara que Aurora fora morta no domingo de carnaval no período de 19 às 20 horas. Fiquei pasmo. O Cícero não matara dona Aurora! Ele estava neste período em Macau. Era uma injustiça o que ele estava sofrendo. Mudei o rumo e fui dar o meu depoimento. Contei tudo o que sabia. Pedi permissão para vê-lo. O Cícero estava em péssimo estado, seus cabelos eriçados e sujos, rosto magro, estampando a dor física e moral. Mãos trêmulas e medrosas. Quando ele me viu fez um largo sorriso de alegria e insegurança, como uma criança perdida quando reencontra um familiar.

- Lázaro, eu não matei Aurora.

- Eu sei, afirmei olhando nos seus olhos.

- Como você sabe?

- Estava em Macau desde sábado e via-o passar.

- Graças a Deus!

- Cícero, por que você explorava dona Aurora?

- Eu? É engano amigo. Fui chamado para pintar sua casa. Durante este tempo, via os maus tratos que Leandro e sua mulher faziam com ela. Um dia ela pediu-me que fosse ao banco, pois havia sumido um talão de cheques. Escondido do Leandro verifiquei todos os extrato bancários dos meses anteriores. Cada mês ele descontava oitocentos reais de sua conta. Eram seis cheques já descontados. Aurora pediu-me para ajudá-la a colocá-los para fora. Mesmo depois que saíram, ainda, descontaram outro cheque da mesma quantia. Mandei sustar o restante do talão. Mantinha-o distante, ele dizia que era sobrinho ou neto para todos. Na verdade, não tem parentesco nenhum com ela. Passei a levá-la ao médico, pois ninguém cuidava de sua saúde. Quantas vezes de madrugada, quando ela passava mal, telefonava-me e eu corria à sua casa e levava-a ao hospital. Ela deu-me um telefone celular e ficava em constante contato comigo. Ela achou injusto eu deslocar-me de minha casa altas horas da madrugada e queria dar-me um carro usado, não aceitei, preferi uma moto que era mais barato. Ela não queria que eu trabalhasse mais para cuidar dela. Queria dar-me dinheiro, eu rejeitava, só pedia um troco quando não havia trabalho. Dei todo o carinho que podia dar. Você viu! Ela deitava-se no meu colo e adormecia. Muitas vezes chorava por não ter nenhum parente vivo. Chamava-me de “filho”. Mesmo na doideira de minha juventude sofria pelo caos que era a sua vida. Ela não se preparou para a velhice, Lázaro. Aliás, pouca gente se prepara. Sofro pela maldade com que a mataram, não com sua morte.

- Cícero, eles devem te soltar, já fiz meu depoimento e vou ser tua testemunha.

- Ô cara, Graças a Deus. Coitada da Aurora! Coitada da Aurora!

Na sua magreza e sofrimento, ainda havia resquícios da inocência e da juventude. Falava balançando os braços, exageradamente, atordoado com a violência da vida.

- Devem te soltar em breve, Cícero.

- Não sei como te agradecer, cara.

Quando saí havia um repórter que me filmou perguntando.

- Você veio falar com o assassino?

- Ele não é o assassino. Ao contrário, era ele quem a ajudava na sua solidão.

Desvencilhei-me rápido e fui para casa com a sensação de ter contribuído para que um inocente não fosse ultrajado.

Ao chegar em casa, nada comentei. Tomei banho e fui jantar. Estávamos à mesa quando o RN TV começou. Houve um silêncio total quando a apresentadora mostrava o meu rosto e dizia o meu nome. Na telinha todo Rio grande do Norte via e ouvia eu dizer: “Ele não é o assassino. Ao contrario, era ele quem a ajudava na sua solidão”.

- Você é louco! Gritava Anita, meter-se numa confusão dessas? Sai de casa dizendo que vai trabalhar. E só arranja problemas?

- Eu só tinha uma aula hoje, Anita. E não podia deixar uma pessoa mofar na cadeia, sabendo que é inocente.

Ela reclamava indignada. Tranquei-me no quarto com a cabeça cheia de problemas.

Mal dormi naquela noite. Minha mãe concordava com Anita.

- Agora, vais ser testemunha de um crime! Não devia se envolver com bandidos. Muito menos com policiais. Eles vão estar a toda hora te chamando. Que perigo, meu Deus, que perigo!

Quando saí para dar aula, comecei a notar que as pessoas me viam e cochichavam.

- É o moço da televisão, sobre o assassinato da velhinha.

O telefone começou a tocar. Um ex-aluno convidou-me para retornar a dar aulas. Fiquei animado. O dia começava a melhorar. Depois da primeira aula fui à casa do ex aluno. Ao chegar, havia algumas pessoas na sala. Sobre a mesa havia um jornal com uma foto minha. Em grandes letras estava a frase. “Ele não é o assassino”. Tomei um susto.

- Professor, o senhor está famoso, dizia o ex-aluno. Todos os presentes vinham me cumprimentar, cordialmente.

- Parabéns hoje em dia é difícil alguém ter coragem de denunciar um assassino.

- Eu não denunciei ninguém!

Falei com espanto.

- Como? Então o senhor não sabe quem matou a dona Aurora?

- Não, absolutamente. Sei quem não matou, é diferente.

Eles me olharam um tanto decepcionado.

- Vamos à aula. Falei para o aluno.

- De qualquer forma é muito louvável não deixar um inocente na cadeia.

- Obrigado.

- O senhor não quer dar aulas para a minha filha? Moramos aqui perto. - Com todo o prazer.

Quando fui dar a aula ouvi um deles falar; “bom rapaz é este!”.

Durante o tempo de aula, ofereciam-me cafezinho ou água. Jamais havia acontecido isto antes. Ao acabar segui direto para a casa da minha nova aluna. Maria Rosa ligou-me, quando começou a perguntar o que estava se passando, disse que passaria depois da aula para conversarmos. Não foi possível, pois, a polícia chamou-me urgente.

- Ao chegar a delegacia, Trouxeram-me o Leandro.

Ele estava transtornado, pálido. Seus cabelos estavam soltos, suas mãos algemadas.

- O Senhor conhece este rapaz?

- Sim é o Leandro.

- O que o senhor sabe sobre ele?

- Ele me foi apresentado como sobrinho ou neto, não sei ao certo!

- Ouviu a vítima falar algo sobre ele, de bem ou de mal?

- Não lembro, fico muito preocupado com as aulas e não presto atenção no que se passa nas casas dos meus alunos.

- Certo, está dispensado.

Quando saí da delegacia, lá estavam os repórteres batendo fotos e perguntando.

- É ele mesmo o assassino?

- Senhores, eu não tenho nada com isto. Sou um técnico de computador.

Ávidos, eles faziam perguntas e saí com rapidez daquele tumulto. Carla ligou-me perguntando:

- Lázaro, você está bem?

- Por enquanto! Não sei até quando, respondi. Preciso te ver, estou sentindo muito a tua falta.

Fui para casa. A péssima aparência do Leandro não saía de minha cabeça. Meu Deus, ele falara tanto sobre: “a religiosidade. A importância do equilíbrio que os seres bons causam para balancear com os maus. O que seria do mundo se não fosse a fé, o despojamento das vaidades, a exagerada importância que damos as coisas materiais?”Jesus, o sol da humanidade! Kardec, o codificador do espiritismo! O espiritismo “é o consolador prometido que a bíblia fala”. Não! Não podia acreditar que alguém, com tanta convicção e fé, pudesse matar uma senhora indefesa. Quem é o ser humano afinal? Como podem coexistir dentro do homem o bem e o mal com tanta voracidade? Lembro que ele citava os poemas de Rabindranath Tagore, com delicadeza e sentimento. Naquela primeira vez que conversamos confesso que me senti mesquinho da “Grande Energia” que emanava da perfeita bondade. Pensava, “o quanto tenho que aprender para integrar-me ao “Todo”. Um sentimento de inferioridade me assolou. “Deus me livre de comer carne, isto é uma barbárie!”Tive vontade de dizer que não comia todos os dias por falta de dinheiro. Tive vergonha de mim mesmo e o quanto estava longe deste caminho purificador. Mas a necessidade resolveu esta questão na busca do trabalho que não aparecia, e aos poucos este sentimento foi se dissolvendo na labuta diária. Prometi ler mais sobre o assunto, assim que tivesse tempo e dinheiro. Não! Definitivamente não poderia ser Leandro o assassino de dona Aurora.

Ao chegar em casa, contei que todos estavam falando sobre o crime e parecia-me que por conta disto estava aparecendo novos alunos. Anita apressou-se a dizer:

- Deves aproveitar o momento e aumentar o preço das aulas.

- O que? Queres tirar proveito de uma situação terrível destas?

- E por que não? Retrucava minha mãe. Você está aparecendo em todos os jornais! Todos querem saber quem é o assassino!

- Céus! Isto está parecendo folhetins de novelas baratas. Que família é a minha?

Fui tomar banho. Deixei a água cair sobre o corpo como se fosse um entorpecente. Queria esquecer do crime, de saber que os novos alunos estavam me procurando mais pela curiosidade dos fatos que pela minha capacidade técnica. A “inferioridade espiritual” que Leandro me provocou, a torpeza da minha família.

Na hora do jantar, lá estava eu na televisão saindo da delegacia e dizendo aos jornalistas:

            - “Senhores, eu não tenho nada com isto! Sou um técnico em computador”.

            Minha mãe deu um pulo e disse:

            - Meu filho! Você devia ter dito o número do seu telefone. Realmente, você não sabe aproveitar a oportunidade!

            Levantei-me com a comida entalada na garganta. Fui para o quarto. Peguei um livro, aleatoriamente. Não conseguia me concentrar na leitura.

Há alguma coisa que falta na natureza humana. Talvez, descuidados que somos deixamos se esparramar ao chão o que havia de melhor em nós. Ou foi Deus que cansado de nossa avidez e superficialidade cansou de habitar em nosso interior? É possível que com a morte haja esse reencontro. Alma integrada, completa. Só Ele sabe o que nos reserva.

            No dia seguinte notei que me observavam mais que o normal. No ônibus duas senhoras no banco detrás cochicharam:

            - É o homem do computador.

            A outra revidou.

            - Não é possível!

            Eu fazia que não escutava. Uma delas tocou nas minhas costas. Voltei-me e ela pediu desculpas. Cochichou com a outra:

            - Eu não falei que era ele?

            O celular tocou. Alguém solicitava aulas. Perguntei quem havia me indicado.

            -Precisava de um professor e consegui o seu telefone. O senhor não apareceu na TV. ontem?

            - Sim, fui eu. Que curso você precisa?

            - Vamos começar pelo básico, o Word.

            Anotei o endereço. Assim, foi começando a encher a minha agenda. Cheguei a um ponto que trabalhava até às vinte e três horas. Já estava acostumado em meio às aulas, ouvir frases soltas tais como: “O senhor é uma pessoa muito bacana”. Fazia de contas que não ouvia ou dava um sorriso encabulado e desconversava. Todos os dias chegava tarde da noite. Anita ficava feliz com o dinheiro que trazia para casa. Comecei a guardar um dinheiro para sobreviver quando entrasse na Faculdade. Agora, eu podia ficar até de madrugada no computador, baixando os livros clássicos. Ninguém reclamava. Ouvi até um dia minha mãe dizer a Anita:

            - Pobrezinho, leve um lanche para ele, está trabalhando demais.

            Minha vista cansada ia devorando os livros. Passei a usar um grau mais forte nos óculos. Não é a toa que se amadurece. Tenho certeza que só através da educação e da arte conseguiremos superar o caos que se instalou em nossas vidas. O desemprego começou desde que inventaram a cerca de arame farpado que inutilizou os valeiros que dividiam os terrenos para que os gados não ultrapassassem as áreas de terras dos minifundiários. A mídia é um arame farpado que esconde suas garras. Temos que ser peritos para identificar a qualidade do produto. Como quem vai pegar um fruto em terreno cercado. Atravessá-la sem rasgar a nossa carne.

           

            Depois que descobriram as digitais, Leandro confessou que havia assassinado dona Aurora. Chamou-a de “velha sovina”. Ah! Tive vontade de ir até a cadeia e dar-lhe uma porrada na cara, ah se tive!

            Estou precisando de sapatos novos. Quando chove meus pés ficam encharcados com os buracos das solas. Entro em uma loja e compro um par de terceira qualidade. Mando embrulhar os velhos e saio como que suspenso no ar. Sapato novo é como o casamento. Começamos a deformá-lo com os velhos joanetes. Em contra partida eles formam novos calos, doloridos, difícil de amoldar aos nossos pés. É o preço do sapato e do casamento.

            Hoje é o aniversário de Carla, aproveito e gasto um pouco mais. Compro um par de brincos pequenos, com o formato do jasmim-dos-poetas, singelos como ela. Direi que os use como escudo: o do lado direito para compor a sua beleza o esquerdo, quando a dor lhe açoitar mais forte, ou acreditar que não suportaremos a solidão e o desespero. Direi que nunca nos abraçamos e nos beijamos ardentemente, mas, que nos meus sonhos a acaricio e entrelaçamos os nossos corpos em belo ato sexual. E isto servirá de lenitivo para a vida inteira - os sonhos. Direi que não posso fazer Anita sofrer porque fomos condicionados a monogamia. Merda! Tímido como sou, sei que não conseguirei dizer nada. Espero que ela perceba.

            Tenho que dar aula em Ponta Negra no apartamento de um cirurgião-dentista. Quando saí de lá vim caminhando a pé, já é tarde e não pude dar os brincos de Carla. Amanhã o farei, pedindo desculpas. Ela entenderá que este trabalho é o meu ganha pão. No calçadão, escuto uma musica que gosto, é Guantanamera, cantada ao vivo. Não tenho dinheiro para pagar a entrada, peço ao porteiro que me deixe ver somente esta musica, ele me olha de cima a baixo e diz:

- Vá rápido.

Escondido, atrás de uma pilastra, verifiquei que era Isaac Ribeiro cantando. De vez em quando, ele colocava a mão esquerda na testa, mostrando o lado interno, pousava-a na fronte com seus dedos alongados, desenhando um triângulo, um abstrato formal, com seu rosto na base. Neste momento era um guerrilheiro convidando-nos ao combate. Ora era o cantor ora o poeta. O corpo esguio balançava sem exagero para valorizar a voz que grave ou aguda remetia-nos a reflexão dos versos. A canção tornava-se um acordo de paz ou uma declaração incondicional á guerra.

                                   “Yo soy un hombre sincero

                                   De donde crecen las palmas

Y Antes de morirme quiero

Echar mis versos del alma.”

 

            Na mão direita algo como um pandeiro, livro ou fuzil, marcava o compasso da classe oprimida, desempregada. Nunca tinha visto um soldado com tanta disposição á batalha. Nem um poeta-cantor derramar protesto e lirismo em chão de madeira crua e paredes avermelhadas. Ah, música esperançosa de justiça e desenvolvimento social!

                                   “Mi verso es un ciervo herido

                                   Que busca en el monte amparo”

            Quando terminou a música, agradeci ao porteiro, atravessei a rua e descobri que com minhas lembranças poderia escrever meu livro. Olhei o mar, este grande mar que como os homens nunca mostram as suas entranhas. Coloquei minhas mãos em forma de concha na boca e gritei a todos os pulmões para ele; “Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja”.

E segui o meu caminho.

 

 

           

           

 

             

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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